Sala de Visita – Flávio José Soares Aguiar

Este é um espaço oferecido a convidados. São artigos, crônicas, entrevistas, poemas… Enfim, uma conversa a três: o leitor, a visita e o autor do blog. O leitor poderá participar enviando comentários.

O nosso primeiro visitante é o meu amigo de várias décadas Flávio José Soares Aguiar. O seu currículo é tão extenso que vamos resumir: professor, engenheiro, mestre e doutor em robótica. Aficionado em caiaque.

A conversa que o Flávio nos traz é uma introspecção sobre trechos do livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel[1] (1469-1527), e a política contemporânea praticada no Brasil. É a sua visão particular sobre o tema.

MAQUIAVEL

Por Flávio José Soares Aguiar

O Príncipe foi publicado postumamente em 1532

 

Em seu livro “O Príncipe” Maquiavel discute as ações que os poderosos devem tomar para se manter no poder. Tornou-se famoso por conta dos conselhos, digamos… pouco éticos. Coisas como “se tiver adversários que possam se tornar poderosos, elimine-os”. Nestes tempos de eleições cabe refletir sobre este tema sempre tão recorrente.

A certo ponto Maquiavel profere uma frase marcante: “é melhor ser temido que amado”. Esta receita deve ter sido válida naqueles tempos. Hoje com a difusão do conhecimento, a universalização da alfabetização, o poder da mídia e a presença cada vez mais poderosa das redes sociais a receita se tornou amarga. Apenas os déspotas e alguns muito ricos recorrem a esta escolha. Ademais a história reserva um lugar especial para os governantes “amados”, razão pela qual são tão reverenciados.

Mas voltemos à frase de Maquiavel. Ser temido ou ser amado. O sonho de muitos políticos é exatamente este. Ser temidos pelos adversários e amado pelos correligionários. Uma demonstração dupla de poder, temor e amor. Veja então que a estruturação, democrática ou não, na qual se tem a polarização política entre adversários que buscam o poder, que sejam mutuamente amados e temidos conduz a sociedade a uma estrutura dividida na qual a conciliação só será possível com a tomada, pacífica ou não, do poder por um dos contendedores.

Eliminar no contexto atual não significa extinguir, corresponde muito mais a desacreditar, desqualificar, desmoralizar, demonizar sempre que possível. Para isso servem as designações petralhas e coxinhas, a infâmia nossa de cada dia, a redução social do outro. As armas para isso são os dossiês, escândalos de toda ordem, calúnias ou mesmo verdades contadas de modo favorável a quem ataca. O campo de batalha é a mídia, a formação da opinião da massa. O julgamento popular já demonstrou ser esta uma força terrivelmente poderosa.

Uma curiosidade particular emerge desta divisão. Nos regimes democráticos, a estrutura jurídica sobre a qual se congregam os correligionários atende pelo nome de “partido”. Desta forma, os partidos são os meios legais pelos quais se possibilita a divisão, a partilha dos recursos e, portanto, dos destinos.

Este modo de organização política atende aos interesses de alguns, em detrimento de todos os outros, que subjugados devem se submeter, de forma pacífica, aos anseios daqueles hora detentores do poder. Estes irão partilhar os bônus da glória e os ônus da vitória.

O principal lucro desta empreitada é a definição do justo, do certo, daquilo que a sociedade deve almejar, da cor ideológica que irá tingir a política de estado e fincar o norte moral para o qual apontarão as bússolas de seus administradores e de todos os outros, beneficiários diretos e indiretos, manipuladores e manipulados, todos estes em coro para defender o discurso de ocasião. Ou seja, a quem governa cabe dizer aos seus governados o que é certo e o que é errado.

Do outro lado se opõem as estruturas de poder dos partidos derrotados e daqueles que se desejam ou se declaram atemporais, apontando valores morais, ideológicos, fisiológicos, religiosos, valores de mercado, etc., que irão se confrontar com as diretivas governamentais. A inercia do que está estabelecido fora das redomas do poder, seja como valor, seja como significado, ou seja o conjunto de escolhas tomados pelo povo independente do poder da mídia.

Estes buscam invariavelmente a manutenção do status quo considerando que são estruturas estabelecidas, que se beneficiam da precariedade do estado de reformular a sociedade, pois sua capacidade vai pouco além da superfície dos fatos. Basta uma eleição e milhões em propaganda para trocar o figurino da verdade.

Da disputa entre os que reivindicam a posse da verdade nasce a guerra da cultura, na qual cada estrutura particular de poder intercede em nome dos seus objetivos, todos agindo simultaneamente geram uma mistura de opiniões que se debatem infinitamente em torno do que é certo e do que é errado, a fim de decidirem e tentarem estabelecer o que é a cultura do dia de hoje. Qual é a roupa, música, linguagem, alimento, cor de cabelo, sapato, moda, sabor do sorvete, forma de escrita, valores, etnia, o que ou quem está por cima, ou para onde deve olhar e se espelhar esta sociedade, destes dias.

Se não concordo com o que está estabelecido, então devo me associar com aqueles que buscam uma revisão daquilo que é em função daquilo que acredito que deveria ser. Posto assim soa como uma troca de efemeridades. Mas olhando para as redes sociais vemos o ferver de ódios na incompreensão do contraditório.

O segundo maior estado do país de joelho diante da administração calamitosa da corrupção sistêmica. Uma intervenção militar em curso. Uma vereadora do PSOL assassinada. Um ex-presidente com a importância histórica de Lula, um político amado por uns, odiado por outros, a um passo de se tornar presidiário. Um presidente tampão com a popularidade mais rasa da República, com o Planalto assombrado por Joesleys e empresas portuárias. Um supremo titubeante que precisa assumir um papel de protagonista mas escolhe invariavelmente a sentença a conta-gotas, passos pra frente, passos pra trás numa valsa descompassada.

O pior desfecho possível do assassinato da vereadora Marielle Franco seria da morte encomendada por adversários ideológicos. Nunca se sabe o que pode disparar na história o gatilho do caos. A solução democrática neste momento não é apenas a escolha maniqueísta entre direita e esquerda, ou vencedores e vencidos, ela precisa ser a solução que nos reconduza a tranquilidade institucional e nos afaste de fantasmas como esquadrões de extermínio de esquerda e de direta, um cenário em que Lula e Bolsonaro surgiriam como alvos potenciais. Pois é para este caminho que estão apontando as palavras que não estão sendo ditas à luz do sol e inundam as redes sociais.

Eleições à frente com o potencial de exponencializar ânimos. A passividade histórica nacional sendo testada a limites nunca vistos pela atual geração. Este barril de pólvora irá arrefecer? Explodir ou continuar a fumaçar? As eleições podem trazer três senários básicos. A pacificação pela escolha majoritária das urnas e a busca de consensos nacionais. A ingovernabilidade pela intolerância social dos novos mandatários do poder a continuar o clima de instabilidade. Ou um novo governo sem sustentação, dependente de um legislativo glutão e sem forças para governar.

Quem viver verá.

Vista pela janela do térreo para o asfalto podemos ver as bombas de gás lacrimogêneo e ouvir o zumbido de balas de borracha. O chão que escorre petróleo, sangue e pátria mãe gentil.

 

[1] Historiador, poeta, diplomata e músico florentino.

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