Antonio Gramsci – apresentação

antonio gramsci the days of prison
Gramsci teve a perspicácia de perceber que na Itália, como em outros países que passavam pelo processo de industrialização, não haveria a vitória da luta armada, com a resultante tomada do poder pelos socialistas, como ocorreu na Rússia czarista. A partir dessa percepção, estabeleceu nova estratégia: a guerra de posiçõesrevolução passiva – guerra ideológica e de convencimento.

É extremamente difícil para este autor apresentar ao leitor uma pessoa que ele próprio não conhece. Mas é isto o que fazemos agora: apresentamos Antonio Gramsci (1891-1937), um dos autores marxistas mais polêmicos, e talvez o mais influente no Brasil e nos movimentos de esquerda contemporâneos, em virtude da engenhosa estratégia de poder a ele atribuída. Alertamos para que não caiamos no limitação do raciocínio maniqueísta: bem e mal, Deus e o Diabo. Gramsci não era mal. Nem bom. Transcende tais conceitos. Ele próprio era um intelectual orgânico da classe trabalhadora: fato! Estamos agora iniciando um estudo em conjunto: autor e leitor. Antes, porém, recomendamos a leitura do artigo A Alienação da Esquerda Petista.

Gramsci era, antes de tudo, um pensador de mente brilhante, absolutamente convencido da causa proletária. Nasceu na Sardenha, ilha pobre ao sul da Itália, mudando-se depois para o Piemonte – norte da Itália -, região que passava por um rápido processo de industrialização e, portanto, de acumulação e concentração da riqueza, deixando exposta a diferença entre a classe burguesa – detentora do capital -, e a classe proletária – detentora da força de trabalho. Este cenário favoreceu o desenvolvimento do movimento sindical, com forte influência do regime soviético recém-implantado pela revolução bolchevique de 1917.

Apesar de ter conseguido ingressar na Universidade de Turim para estudar literatura, Gramsci teve que abandonar o curso por questões financeiras. Passou a ganhar a vida escrevendo em jornais ligados à esquerda, publicando ensaios sobre crítica literária e teoria política. Se filiou ao Partido Socialista Italiano, onde teve forte atuação mais à esquerda, o que resultou em sua participação na fundação do Partido Comunista da Itália, em 1921, que a partir de 1943 passou a se chamar Partido Comunista Italiano, ligado ao PC russo.

A sua vivência no movimento sindical, erudição e senso de observação histórica, levaram-no a perceber que na Itália, tanto quanto nos demais países da Europa Ocidental que passavam pelo processo de industrialização, não havia ambiente que ensejasse uma vitória do proletariado através da luta armada, como ocorrera na Rússia czarista – que na verdade não tinha uma burguesia, nem um proletariado, propriamente ditos, pois no começo do séc. XX era uma monarquia absolutista com sistema de produção semi-feudal. Tal certeza se aguçou quando, em 1922, foi à Rússia como representante do Partido Comunista da Itália, oportunidade em que pôde observar a imensa vala entre as teorias do marxismo-leninismo e as práticas repressoras e escravistas do bolchevismo, inclusive com o extermínio de cidadãos russos, mesmo esquerdistas, que de alguma forma divergiam do partido. Tratava-se de uma realidade distinta da europeia, onde a burguesia formara-se ao longo de um processo histórico modelado pela transição do modo de produção feudal para o mercantilista e daí ao industrial. A conclusão foi que um regime pode deter o poder sem ser dirigente, mantendo-se mediante a opressão, mas por pouco tempo. Contudo, é preciso esclarecer que a decepção de Gramsci não foi com o marxismo, mas com os métodos adotados na União Soviética.

A partir desta conclusão, dedicou tempo e estudo – principalmente depois da sua prisão pelo regime fascista, em 1926 -, para elaborar uma estratégia factível que possibilitasse a assunção da classe proletária sobre a burguesa, uma vez que, como ficara demonstrado pelos fatos, não se tratava apenas do domínio da infraestrutura pela classe capitalista, mas também do domínio da superestrutura, pois era justamente esta que promovia a hegemonia da burguesia, dando-lhe o suporte ideológico necessário.


INFRA-ESTRUTURA. Conjunto de instalações e equipamentos empregados na extração, transporte e processamento de matérias-primas essenciais, nos meios de treinamento da força de trabalho e na fabricação de bens de capital. Abrange indústria extrativa mineral, ferrovias, rodovias, navegação, siderurgia, metalurgia de não-ferrosos, indústria energética e mecânica. Na concepção marxista, infra-estrutura designa a base econômica da sociedade, o modo de produção dominante e, mais especificamente, o conjunto das relações de produção. Essa infra-estrutura econômica determina a superestrutura político-social historicamente correspondente.” (Sandroni, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 429 )

SUPERESTRUTURA. Conjunto das instituições político-jurídicas e das formas de consciência social (arte, religião, filosofia) que, segundo Marx, corresponde historicamente a determinada base econômica ou infra-estrutura. Essa relação entre base e superestrutura não ocorreria de forma mecânica, mas dialética. Embora Marx tenha afirmado que a infra-estrutura (o econômico) só determina a superestrutura (o político-social) em última instância, as análises dessa questão constituem ponto polêmico. Alguns pensadores, como Louis Althusser, salientam que o conceito de superestrutura não abarca todos os fenômenos extra-econômicos, havendo necessidade de formulação de um conceito mais abrangente, que inclua até mesmo a noção de ciência. E muitos ressaltam que os fenômenos políticos, jurídicos, filosóficos, religiosos e artísticos, apesar de repousarem sobre o desenvolvimento econômico, repercutem uns sobre os outros. Marx afirma, por exemplo, que na Idade Média o aspecto determinante era o religioso, embora determinado por uma forma particular de estrutura econômica. Só no capitalismo é que o econômico se apresentaria como fator determinante e dominante dos fenômenos sociais mais amplos, inclusive nas esferas da política e da ideologia.” (Idem, p. 805-806)


Para Marx a sociedade se dividia em dois níveis: infraestrutura e superestrutura. Era a infraestrutura – relações de produção – que forjava a superestrutura – relações e valores sociais. Por isso, uma vez alteradas as relações de produção a partir do domínio da infraestrutura pelo proletariado, através da luta armada – motivada pela consciência de classe -, haveria o consequente estabelecimento da nova ordem social, ou seja, uma superestrutura baseada nos princípios e valores proletários.
Mas na percepção de Gramsci, o processo de desenvolvimento histórico do capitalismo fomentou valores sociais burgueses que suplantavam a formação da consciência de classe, inibindo, portanto, o ânimo do proletariado para assumir o controle da infraestrutura através da luta armada. Com esta conclusão, formula a matriz de todo o seu trabalho: para que a classe proletária assuma o domínio pleno dos meios de produção e estabeleça nova relação de trabalho através do socialismo, no primeiro momento, e do comunismo pleno, ao final, é preciso, primeiramente, destruir a hegemonia cultural burguesa com uma contra-hegemonia, uma contracultura que desmonte o conjunto de crenças e valores burgueses.

E como atingir o objetivo almejado? Surge então o conceito de guerra de posiçõesou revolução passiva, que substitui a luta armada. Como fez Moisés ao vagar por 40 anos com o povo hebreu no deserto, a revolução passiva apela para o tempo, a fim de formar as futuras gerações conforme os parâmetros político-ideológicos da classe trabalhadora. Neste sentido, Gramsci observou que, através da história, toda classe dominante criou intelectuais orgânicos, os quais davam-lhe a sustentação ideológica necessária para a manutenção da hegemonia. Da mesma forma, a classe trabalhadora deveria gerar os seus intelectuais orgânicos que formulassem o suporte ideológico-cultural próprio para a destruição da hegemonia  burguesa e a formação da superestrutura proletária.


“Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma fun­ção essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc.” (Antonio Gramsci, Caderno 12)


Assim, ao Estado de infraestrutura burguesa – sociedade política, poder coercitivo – deve ser agregada a sociedade civil – não-estatal, consensual, formada pelos diversos segmentos de classe. Gramsci vai além do isolacionismo comunista, agregando também as tendências da esquerda não-comunista que compõem a sociedade civil, de modo a ampliar o Estado – conceito de Estado ampliado -, pois, em face do que observara na Rússia soviética, como já mencionamos acima, ele substitui o Estado totalitário pelo Estado de consenso.


“A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários” . Seria possível medir a “organicidade” dos diversos estratos intelectuais, sua conexão mais ou menos estreita com um grupo social fundamental, fixando uma gradação das funções e das superestruturas de baixo para cima (da base estrutural para o alto). Por enquanto, podem-se fixar dois grandes “planos” superestruturais: o que pode ser chamado de “ sociedade civil” (isto é, o conjunto de organismos designados vulgarmente como “privados” ) e o da “socie­dade política ou Estado”, planos que correspondem, respectivamente, à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “ domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “jurídico”.” (Antonio Gramsci – Caderno 12)


Cabe lembrar que socialismo não é sinônimo de comunismo: socialismo é uma fase de transição para o comunismo, que em sua forma plena implica na extinção do Estado enquanto sociedade política, sobrevivendo a sociedade civil organizada, de modo a prescindir o elemento repressor estatal. Gramsci foi fiel a este objeto da teoria marxista, mas divergiu do modelo soviético, no qual se implantou uma ditadura socialista de Estado totalitário. Para ele o Estado deveria ser, aos poucos, destruído já na fase de transição, lenta e gradualmente, na medida em que a sociedade civil se expande.

Em suma: os intelectuais orgânicos das classes não-burguesas estabelecem a base ideológica sobre a qual se propagará a revolução cultural, que por sua vez se constitui de duas fases: a destruição da base ideológica burguesa – superestrutura que compreende valores morais, éticos, familiares, etc., através do domínio dos meios culturais e educacionais: a contra-hegemonia. E paralelamente implanta-se uma nova ordem social – a nova superestrutura não-burguesa, não-capitalista, composta de novos valores, ou ao menos destituída dos valores que levaram à hegemonia capitalista burguesa, no passado. Neste contexto, a sociedade civil faz o intercâmbio entre a nova base ideológica, nova superestrutura, e a infraestrutura burguesa, que naturalmente também vai ser destruída, dando lugar a novas relações de produção, já não mais constituída da relação capital-trabalho, mas de natureza comunista, fenômeno este que extingue, de forma natural, o Estado político repressor, permancendo as organizações sociais controladas pelo partido operário, que teria a função de sanear quaisquer divergências herdadas dos resquícios capitalistas.

Evidentemente que este artigo não esgota o assunto. O objetivo é, como já expomos, fazer uma breve apresentação das ideias de Antonio Gramsci, sem agregar juízo de valor. Aqui nos submetemos às críticas e possíveis correções históricas, teóricas, etc. O estudo prossegue.

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