1. Introdução: A Unicamp e a nova fronteira da política identitária
No dia 1º de abril de 2025, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovou, por unanimidade, a criação de cotas específicas para pessoas trans, travestis e não-binárias em seus cursos de graduação. A medida prevê ao menos uma vaga para esses grupos em cursos com até 30 vagas regulares, e duas vagas para cursos mais concorridos — metade delas reservada a candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, medalhistas e alunos de escola pública, sendo que estes últimos são bonificados com até 60 pontos pelo Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social[1]. A seleção inclui autodeclaração e relato de vida avaliado por comissão.
Apresentada como um avanço civilizatório e uma reparação histórica, fruto de manifestações dos alunos, a decisão levanta também questionamentos profundos sobre os rumos da universidade pública, o papel da identidade nas políticas públicas e os limites da engenharia social por via institucional. Estamos diante de um novo paradigma político-educacional, sustentado por uma matriz ideológica que se aproxima daquilo que se convencionou chamar de cultura woke, que surgiu nas comunidades afro-americanas nos Estados Unidos, com a expressão “stay woke” – permaneça acordado – como um alerta para manter-se atento às injustiças e desigualdades sociais, propondo uma releitura da sociedade a partir de identidades interseccionais — como gênero, sexualidade, raça e etnia —, desafiando normas históricas e estruturas tidas como opressoras. Essa visão encontra solo fértil nas universidades, que, em nome da inclusão, tornam-se laboratórios de transformação cultural. Não se trata apenas de corrigir injustiças históricas, mas de reconfigurar o próprio imaginário social sobre mérito, igualdade e justiça.
É neste ponto que se revela a atualidade do pensamento de Antonio Gramsci (1891–1937). O filósofo marxista italiano não pregava a tomada revolucionária do poder pela força, mas sim a conquista da hegemonia cultural: a capacidade de um grupo impor seus valores como senso comum por meio das instituições — entre elas, a escola e a universidade. Para Gramsci, controlar a cultura é controlar o futuro. A classe dominante mantém seu poder não só pela força, mas pela hegemonia cultural — ou seja, pela naturalização de seus valores como senso comum. Essa ideia serviu de base para pensadores posteriores que passaram a ver a cultura como campo central da disputa política. O movimento woke, ao buscar transformar a linguagem, a mídia, a educação e os padrões simbólicos, opera na lógica gramsciana de subversão da hegemonia dominante. A diferença fundamental é que Gramsci pensava em termos de classe social, enquanto o wokismo opera via identidades interseccionais (raça, gênero, sexualidade etc.).
Ao aplicar a lógica gramsciana às práticas contemporâneas da cultura woke, percebe-se que as novas políticas identitárias não são apenas medidas administrativas: são instrumentos de disputa simbólica, que pretendem moldar uma nova ordem social baseada em narrativas específicas de opressão e representatividade. Nesse processo, conceitos clássicos como universalidade, mérito e neutralidade institucional são frequentemente colocados sob suspeita — ou mesmo rejeitados.
O caso da Unicamp, portanto, não é isolado: é sintoma de uma virada cultural mais ampla, onde instituições do saber passam a operar como vetores de um novo projeto civilizacional. Um projeto que se pretende inclusivo, mas que levanta tensões entre igualdade de condições e privilégio de identidades, entre justiça social e relativismo moral, entre diversidade e fragmentação.
A partir deste cenário, esta matéria propõe uma análise crítica, plural e fundamentada da cultura woke — sua genealogia intelectual, seus principais pensadores, seus pilares ideológicos, seus impactos na política e na sociedade, bem como suas contradições internas e seus efeitos práticos.
2. As Raízes Filosóficas e Intelectuais do Wokismo
A cultura woke alcançou destaque a partir da música Master Teacher, da cantora Eryka Badu, em 2008, e também destacou-se no movimento Black Lives Matter – vidas negras importam. Enquanto fenômeno social e político contemporâneo, não surgiu do nada. Ela é resultado de um longo processo intelectual que atravessa o século XX e se alimenta de diferentes correntes filosóficas — desde o marxismo cultural até o pós-estruturalismo francês.
Embora os ativistas e movimentos atuais nem sempre citem essas fontes, suas ideias estão impregnadas na linguagem, nas estratégias e nos objetivos do pensamento woke. Para compreender esse fenômeno com profundidade, é preciso retornar às suas raízes intelectuais: várias correntes filosóficas e teóricas que questionaram o poder, a linguagem, a identidade e os sistemas de dominação. Destacam-se quatro grandes eixos de influência:
2.1 Gramsci e a hegemonia cultural – ligação com o wokismo
Embora Gramsci jamais tenha falado em “identidade de gênero” ou “interseccionalidade” (conceitos modernos), sua teoria inspirou diversas vertentes da Nova Esquerda e da Teoria Crítica (Escola de Frankfurt). A partir disso:
- A cultura woke herda a ideia de que a transformação social precisa começar na cultura, não apenas na economia ou na política.
- Há uma tentativa explícita de desconstruir a hegemonia cultural tradicional (heteronormativa, branca, masculina) e substituí-la por novas narrativas de inclusão e diversidade.
- No contexto atual, a cultura woke representa uma tentativa de substituir essa hegemonia por outra, centrada na inclusão e na visibilidade de grupos histórica ou simbolicamente oprimidos. Mas ao transformar essas identidades em critérios normativos, o movimento pode também produzir novas formas de exclusão e intolerância.
- A linguagem, a mídia, os currículos escolares e a arte tornam-se campos de batalha ideológica, tal como Gramsci antecipou. Instituições como escolas e universidades são instrumentos centrais dessa disputa simbólica. A cultura dominante se reproduz quando seus valores são aceitos como senso comum.
2.2 A Teoria Crítica e a Escola de Frankfurt
Outro pilar fundamental do pensamento woke é a Teoria Crítica, desenvolvida por intelectuais da chamada Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. Esses pensadores analisaram o modo como o capitalismo moderno, aliado à indústria cultural, não apenas domina economicamente, mas também molda subjetividades, transformando os indivíduos em consumidores passivos e conformistas.
Marcuse, em especial, foi influente ao afirmar que as lutas do futuro não viriam mais do operariado tradicional, mas de minorias marginalizadas — como negros, mulheres, estudantes e homossexuais — que teriam o potencial de subverter a ordem vigente. Essa tese ecoa fortemente nas agendas contemporâneas da cultura woke, que buscam empoderar justamente esses grupos historicamente excluídos.
2.3 O Pós-estruturalismo Francês
A cultura woke também se alimenta do pós-estruturalismo, uma corrente filosófica que emergiu na França na segunda metade do século XX, sobretudo com Michel Foucault, Jacques Derrida e Jean-François Lyotard.
Foucault rompeu com a ideia de que o poder é centralizado apenas no Estado ou nas elites. Para ele, o poder está difuso e se manifesta em práticas cotidianas, discursos, normas e instituições. Daí surge a preocupação típica do wokismo com a linguagem como instrumento de dominação, e com a necessidade de ressignificar termos e reconstruir discursos.
Derrida, com sua “desconstrução”, propôs que todo texto (e por extensão, toda ideia ou identidade) carrega contradições e hierarquias ocultas. Isso legitima a prática woke de revisar obras clássicas, questionar binarismos (homem/mulher, branco/negro, normal/anormal) e exigir novas formas de representação.
Já Lyotard antecipou o espírito fragmentado da era atual ao anunciar o “fim das grandes narrativas” — como o cristianismo, o iluminismo ou o marxismo ortodoxo. Em seu lugar, valoriza-se a pluralidade de pequenas histórias, como as vivências individuais das minorias, hoje tão presentes no discurso woke.
2.4. Intelectuais Ativistas Contemporâneos
A cultura woke, em sua vertente mais contemporânea, se nutre do trabalho de diversos intelectuais ativistas que ampliaram e aplicaram os conceitos herdados da teoria crítica, do pós-estruturalismo e das lutas sociais do século XX. Suas obras são amplamente citadas em universidades, ativismos digitais e políticas públicas em várias partes do mundo. Na esteira dessas influências, surgem os pensadores contemporâneos que moldam diretamente o pensamento woke atual:
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Judith Butler – Filósofa norte-americana, autora da teoria da performatividade de gênero, Butler argumenta que gênero não é uma identidade estável, mas sim uma construção social reiterada ao longo do tempo. Essa ideia é base para boa parte do ativismo trans e da desconstrução das normas de gênero na cultura woke.
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Kimberlé Crenshaw – Jurista e teórica do direito, Crenshaw cunhou o termo “interseccionalidade”, explicando como diferentes sistemas de opressão se sobrepõem. Sua proposta transformou o modo como políticas públicas e estudos sociais lidam com raça, gênero e classe.
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Angela Davis – Militante histórica dos direitos civis nos EUA, pensadora radical e ex-integrante do Partido Comunista, une marxismo, feminismo negro e antirracismo numa crítica profunda ao sistema penal e ao racismo estrutural, propondo o abolicionismo penal.
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Ibram X. Kendi – Autor de Como Ser um Antirracista, Kendi defende que não basta não ser racista — é preciso ser ativamente antirracista. Sua visão promove políticas institucionais reparatórias e é amplamente adotada em programas de diversidade corporativa e educacional.
- Djamila Ribeiro – Filósofa e escritora brasileira, popularizou no Brasil o conceito de “lugar de fala”, segundo o qual apenas quem vive determinada opressão pode falar com legitimidade sobre ela. A escuta ativa das minorias deve preceder qualquer julgamento. Tem papel central na difusão do pensamento woke no Brasil.
Todos esses autores propõem uma substituição do paradigma universal por um paradigma de reconhecimento, onde o valor moral da fala e da ação depende da identidade de quem fala — e não apenas do conteúdo do que é dito.
3. Pilares Ideológicos do Wokismo
A cultura woke é sustentada por um conjunto de ideias e valores que se estruturam em torno de uma visão crítica da sociedade contemporânea. Esses pilares não são dogmas sistematizados por uma única escola de pensamento, mas sim um conjunto fluido de princípios e práticas que orientam movimentos sociais, ativismos digitais, políticas institucionais e debates culturais. A seguir, os principais fundamentos que compõem o ethos woke:
3.1. Interseccionalidade
Conceito criado pela jurista Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade sustenta que as opressões sociais não operam isoladamente, mas sim de forma entrelaçada. Uma mulher negra, por exemplo, enfrenta tanto o racismo quanto o machismo — e não se pode compreender sua experiência sem considerar essa intersecção. Essa lógica está na base de muitas políticas e discursos que exigem recortes cada vez mais específicos na análise social.
3.2. Desconstrução da Linguagem e das Normas
O wokismo considera que a linguagem não é neutra, mas carrega estruturas de dominação. Assim, palavras, expressões, pronomes e construções linguísticas passam a ser alvo de revisão. A linguagem neutra, o uso de pronomes alternativos e a substituição de termos considerados opressores fazem parte desse processo. Trata-se de um esforço por tornar o discurso mais inclusivo — ainda que isso gere controvérsias quanto à liberdade de expressão e à clareza comunicativa.
3.3. Justiça Social e Reparação Histórica
Um dos pilares centrais do wokismo é o reconhecimento de que certos grupos sociais foram historicamente oprimidos — e que não basta garantir igualdade formal, sendo necessário promover medidas reparatórias. Isso inclui ações afirmativas, cotas raciais, reconhecimento de genocídios históricos, inclusão de autores marginalizados nos currículos escolares, entre outros. A ideia de “equidade” (igualdade de condições) passa a ter precedência sobre a mera “igualdade” (igualdade formal perante a lei).
3.4. Representatividade e Visibilidade
O movimento woke defende que os espaços de poder e visibilidade social precisam refletir a diversidade real da sociedade. Isso se traduz na exigência por representatividade negra, feminina, LGBTQIA+, indígena e de outras minorias em cargos públicos, empresas, mídias, filmes, publicidade, escolas e outras esferas. A presença simbólica desses grupos é vista como fundamental para desconstruir estereótipos e legitimar outras vivências.
3.5. Valorização da Subjetividade e das Experiências Individuais
Na contramão das grandes teorias universalistas, o wokismo enfatiza o valor da experiência pessoal como base de autoridade. “Lugar de fala”, expressão popularizada por Djamila Ribeiro no Brasil, sintetiza essa ideia: apenas quem vive determinada opressão pode falar com legitimidade sobre ela. Essa valorização da vivência, no entanto, é alvo de críticas por reduzir o debate público à autoridade subjetiva, dificultando o diálogo universal.
3.6. Ativismo Permanente e Vigilância Ética
O ethos woke implica um compromisso contínuo com a vigilância ética. Isso se traduz na denúncia constante de comportamentos, falas, posturas e estruturas consideradas opressoras — em redes sociais, empresas, escolas, universidades e no meio artístico. Essa vigilância pode gerar avanços importantes (como a exposição de racismo e abuso), mas também é acusada de alimentar uma cultura de cancelamento, em que erros do passado ou falas fora do “consenso moral” são punidos com linchamentos digitais e exclusão social.
3.7. Desconstrução da Tradição
Por fim, a cultura woke propõe uma crítica sistemática a instituições, costumes e estruturas históricas vistas como legitimadoras da opressão — família tradicional, religião, ciência normativa, moralidade ocidental, entre outras. Trata-se de um impulso que busca desconstruir as bases culturais do “mundo antigo” para abrir espaço a novas formas de existência, relação e identidade.
4. Efeitos Práticos do Movimento Woke
O impacto da cultura woke ultrapassa o campo das ideias. Ela produziu efeitos concretos e mensuráveis em diversos setores da vida social, institucional e econômica. Abaixo, os principais:
4.1. Educação
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Reformulação de currículos escolares e universitários, com inclusão de autores negros, indígenas, LGBTQIA+ e feministas.
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Debates sobre linguagem neutra, banheiros unissex e educação antirracista.
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Pressão por treinamentos de diversidade para professores e gestores.
4.2. Cultura Pop e Mídia
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Ampliação da representatividade em filmes, séries, campanhas publicitárias e premiações.
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Cancelamento de obras vistas como racistas, machistas ou transfóbicas — de clássicos da literatura a humoristas.
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Criação de novos cânones culturais alinhados a valores inclusivos.
4.3. Mercado Corporativo
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Adoção de políticas ESG (Ambiental, Social e Governança) com foco na diversidade. Environmental, Social and Governance: “(…) Um conjunto de diretrizes que orienta as práticas empresariais em relação ao meio ambiente, às questões sociais e à governança corporativa”.
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Treinamentos antirracistas e comitês de inclusão.
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Campanhas publicitárias com minorias como protagonistas — gerando, por vezes, acusações de “woke marketing” ou oportunismo ideológico.
4.4. Direito e Políticas Públicas
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Leis antidiscriminação mais robustas em diversos países.
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Debates sobre cotas, ações afirmativas e reparações históricas.
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Propostas de revisão do sistema penal sob perspectiva racial e de gênero.
5. A Cultura Woke e a Política: o Caso dos EUA
O berço do movimento woke também é o centro de sua maior controvérsia política. Nos Estados Unidos, o termo “woke” passou de elogio a pejorativo — e se tornou símbolo da guerra cultural que divide o país.
5.1. Adoção pela Esquerda Democrata
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O Partido Democrata, especialmente sob a ala progressista (Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Bernie Sanders), incorporou diversas pautas woke: justiça racial, climática, de gênero e migratória.
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Durante o governo Biden, houve incentivos a políticas de diversidade institucional, mudanças na linguagem administrativa e ações afirmativas em larga escala.
5.2. Reação Conservadora
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A direita, sob a liderança de Donald Trump e governadores como Ron DeSantis, adotou uma agenda “anti-woke”.
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Foram promovidas leis para banir currículos baseados em “teoria crítica da raça”, vetar uso de linguagem neutra e restringir discussões sobre identidade de gênero em escolas.
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O termo “woke” passou a ser usado como símbolo de um progressismo visto como autoritário, moralista e avesso à liberdade de expressão.
5.3. As Eleições de 2024
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O pleito presidencial de 2024 foi, em muitos aspectos, um referendo sobre o wokismo.
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Biden, mesmo moderando a linguagem, ainda foi associado à agenda woke pela mídia conservadora.
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Trump, por outro lado, capitalizou politicamente sobre o “medo cultural” e consolidou sua base com um discurso de restauração de “valores tradicionais”.
5.4. O Fator Internacional
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A guerra cultural americana contaminou debates no Reino Unido, Canadá, Brasil, Alemanha e Austrália.
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Governos e partidos ao redor do mundo passaram a adotar posicionamentos “anti-woke” como bandeira eleitoral, muitas vezes desconectados da realidade local.
6. As Críticas à Cultura Woke
A cultura woke, embora celebrada por muitos como um avanço na luta por justiça e inclusão, é igualmente alvo de críticas contundentes, vindas de múltiplos espectros ideológicos. Enquanto os críticos de direita a veem como uma ameaça à liberdade e à racionalidade ocidental, pensadores de esquerda denunciam uma substituição da luta de classes por identitarismos fragmentados e moralistas.
6.1. Críticas da Direita: Entre a Liberdade e a Ordem
6.1.2. Cultura do Cancelamento
A crítica mais recorrente à cultura woke por parte dos conservadores está naquilo que se convencionou chamar de “cultura do cancelamento”: a prática de boicotar socialmente pessoas, obras ou empresas por comportamentos ou opiniões considerados ofensivos às normas woke. Isso tem levado à demissão de professores, censura de livros, exclusão de artistas e linchamentos digitais — muitas vezes baseados em julgamentos apressados e sem direito à defesa.
6.1.3. Intolerância ao Dissenso
Apesar de se apresentar como um movimento de tolerância, o wokismo é acusado de não tolerar a divergência. Quem questiona seus fundamentos, mesmo com argumentos racionais, pode ser rotulado como opressor, preconceituoso ou reacionário, inviabilizando o debate público e instaurando um novo moralismo.
6.1.4. Inversão de Valores
Críticos conservadores, como Jordan Peterson e Douglas Murray, apontam que o movimento woke inverte as hierarquias morais: transforma opressores em vítimas e vice-versa, glorifica a fraqueza em vez da excelência e promove ressentimento em vez de superação.
6.1.5. Destruição da Tradição e da Cultura Ocidental
A reavaliação de símbolos históricos, estátuas, obras literárias e personagens clássicos é vista por setores da direita como um projeto de destruição da herança civilizatória ocidental. Em vez de interpretar o passado com criticidade e contexto, o movimento tenderia ao revisionismo e à iconoclastia.
6.2. Críticas da Esquerda: Entre a Política e a Moral
6.2.1. Fragmentação das Lutas Sociais
Filósofos como Slavoj Žižek e Nancy Fraser criticam o wokismo por transformar a luta política em uma disputa de identidades isoladas. Isso, segundo eles, enfraquece projetos coletivos de transformação estrutural, como o socialismo, em favor de reivindicações simbólicas e performativas.
6.2.2. Substituição da Luta de Classes pelo Ativismo Moral
A cultura woke desloca o foco da análise estrutural para críticas morais sobre comportamentos individuais, criando um novo puritanismo secular. Em vez de enfrentar o capitalismo, o patriarcado ou o imperialismo como sistemas, combate-se quem faz uma piada, usa o pronome “errado” ou se equivoca linguisticamente.
6.2.3. Cooptabilidade pelo Mercado
Outra crítica recorrente é a de que o wokismo foi rapidamente absorvido pelo capitalismo corporativo, tornando-se um nicho de marketing. Empresas multinacionais adotam campanhas inclusivas e “progressistas” ao mesmo tempo em que exploram trabalhadores em países periféricos — o que alguns chamam de “capitalismo woke”.
6.2.4. Politização do Cotidiano e Fadiga Miliciana
A vigilância constante sobre linguagem, comportamento e preferências pessoais gera um ambiente de culpabilização crônica, fadiga moral e autoanulação. Até mesmo vozes simpatizantes à justiça social criticam os excessos do ativismo, que, segundo alguns, “perde o povo” ao se distanciar do bom senso e da realidade vivida.
7. O Paradoxo Woke-Islã: Tolerância ou Contradição?
Um dos dilemas mais debatidos — e menos resolvidos — da cultura woke é sua relação com o islamismo, especialmente em contextos ocidentais. Ao mesmo tempo em que defende os direitos das minorias religiosas e combate a islamofobia, o movimento woke frequentemente se vê diante de valores culturais e religiosos que entram em tensão direta com suas próprias bandeiras de gênero, sexualidade e liberdade individual.
7.1. A Lógica do Multiculturalismo
A cultura woke adota uma perspectiva multiculturalista, baseada na valorização da diversidade cultural e no respeito às tradições das minorias. Isso leva à defesa do islamismo como identidade cultural e religiosa oprimida, sobretudo em países europeus e na América do Norte, onde muçulmanos enfrentam preconceito, exclusão e ataques xenófobos.
Nesse contexto, o discurso woke atua como um escudo contra a islamofobia e promove a inclusão de práticas e símbolos islâmicos, como o uso do hijab, a construção de mesquitas e a introdução de conteúdos islâmicos em espaços públicos e educacionais.
7.2. O Choque de Valores
No entanto, essa solidariedade esbarra em contradições ideológicas internas, especialmente quando os valores progressistas do wokismo colidem com normas religiosas islâmicas mais conservadoras, como:
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A submissão feminina prescrita em algumas interpretações da sharia.
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A criminalização da homossexualidade em países de maioria islâmica.
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A repressão à liberdade de expressão, inclusive de dissidentes muçulmanos.
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A intolerância religiosa a outras crenças ou ao secularismo.
A tensão torna-se mais evidente quando o mesmo movimento que celebra drag queens em bibliotecas também defende a proteção do véu islâmico como símbolo de empoderamento — mesmo que, em diversos contextos, o uso do véu seja imposto por coerção social, familiar ou estatal.
7.3. O Caso Charlie Hebdo e a Liberdade de Expressão
O paradoxo se tornou visceral nos episódios relacionados ao jornal satírico francês Charlie Hebdo, atacado por islamistas em 2015 após publicar charges do profeta Maomé. Muitos setores progressistas condenaram os ataques, mas parte da militância woke também criticou a revista por “islamofobia” e “discurso de ódio”.
Esse episódio revela a ambivalência do discurso woke: entre defender a liberdade de expressão como valor ocidental e proteger a sensibilidade cultural e religiosa das minorias — mesmo que isso implique restrições ao próprio discurso.
7.4. As Reações Filosóficas e Políticas
Filósofos como Pascal Bruckner, Alain Finkielkraut e Bernard-Henri Lévy acusam o wokismo de praticar um relativismo moral perigoso, no qual valores liberais são abandonados em nome de uma inclusão acrítica. Já autores como Edward Said, em Orientalismo, alertam para o risco do preconceito ocidental ao representar o islã como homogêneo e atrasado.
Outros, como Ayaan Hirsi Ali — ex-muçulmana e ativista feminista —, denunciam o silêncio cúmplice de parte da esquerda ocidental frente a abusos cometidos contra mulheres e minorias dentro de comunidades islâmicas, tudo em nome do respeito cultural.
7.5. Entre a Coerência e a Contradição
O paradoxo woke-islã evidencia uma tensão entre dois pilares da cultura woke:
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O universalismo dos direitos humanos (gênero, sexualidade, liberdade).
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O respeito incondicional à diversidade cultural e à identidade das minorias.
A tentativa de conciliar ambos muitas vezes leva à incoerência: defende-se a liberdade de expressão para uns, mas não para outros; condena-se o machismo cristão, mas silencia-se diante do machismo islâmico. Em certos casos, a tolerância irrestrita acaba por tolerar a intolerância — um dilema clássico já apontado por Karl Popper em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos.
8. Considerações Finais
A cultura woke, ao mesmo tempo em que promove uma profunda revisão dos valores sociais tradicionais, também desperta questionamentos fundamentais sobre os rumos da democracia, da liberdade e da própria convivência civilizada. O movimento, embora fragmentado e difuso, tem como mérito inegável o fato de ter trazido à tona pautas historicamente silenciadas — o racismo estrutural, o machismo institucional, a homofobia e a marginalização de identidades diversas.
Seus fundamentos teóricos — ainda que por vezes mal interpretados ou instrumentalizados — dialogam com as contribuições legítimas de pensadores como Gramsci, Foucault, Butler, Crenshaw, entre outros. Eles ajudaram a revelar o poder oculto nas estruturas discursivas, nas instituições e na linguagem. Nesse aspecto, o wokismo cumpre um papel crítico e emancipador.
Contudo, os excessos do movimento, suas contradições internas e sua apropriação por interesses políticos e corporativos também precisam ser objeto de análise séria e desapaixonada. A vigilância ética permanente, a cultura do cancelamento, a deslegitimação do contraditório e a intolerância travestida de justiça social transformam o que deveria ser libertação em opressão moral.
Além disso, a tensão entre multiculturalismo e universalismo dos direitos humanos, evidenciada na relação com o islamismo, revela que o caminho da inclusão não pode ser trilhado sem critérios, sem crítica e sem coerência.
A verdadeira justiça social não se constrói por decretos linguísticos, nem por purgas simbólicas. Exige debate racional, abertura ao dissenso e compromisso com a verdade — mesmo quando ela desconforta. A cultura woke, assim como qualquer movimento cultural e político, deve estar aberta à crítica, sob o risco de transformar-se em um novo dogma, tão autoritário quanto aquele que combate.
Ao final, o desafio é este: como promover inclusão sem exclusão? Como avançar socialmente sem sacrificar a liberdade de pensamento? Como combater injustiças sem gerar novos totalitarismos? Essas são as perguntas que ficam — e que exigem mais do que respostas fáceis. Exigem maturidade democrática.
[1] Ou seja: as vagas da nova cota são subtraídas da conta destinada à ampla concorrência. Por exemplo, em um curso com 30 vagas, 15 são destinadas a candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, e originários de escola pública, e uma – ou duas, se o curso for concorrido, como medicina – para a nova cota, resultando em 14 ou 13 vagas para a ampla concorrência, sendo a disputa interna em cada grupo, o que enseja que um candidato da ampla concorrência seja reprovado com nota três vezes maior do que um candidato aprovado em uma das outras duas cotas.