Foro por Prerrogativa de Função: Um Privilégio que Viola o Devido Processo Legal

Bolsonaro e Alexandre de Moraes
Jair Bolsonaro e Alexandre de Moraes: réu e juiz. Foto: Antônio Augusto/TSE.

Com a proximidade do julgamento da denúncia da PGR (Procuradoria-Geral da República) contra Jair Bolsonaro (PL), Mauro Cid, Braga Netto, Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sergio Nogueira, Alexandre Ramagem e Almir Garnier, marcado para os dias 25 e 26 de março pela Primeira Turma do STF, composta pelos ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes – relator -, Carmem Lúcia, Flávio Dino e Luiz Fux, um cenário de fundo nos preocupa: a imparcialidade dos mencionados juízes para julgar o caso concreto, visto que, pelo menos, Zanin, Moraes e Flávio Dino, são EVIDENTEMENTE comprometidos com os fatos. E.g., todos os argumentos cautelares das defesas foram decididos improcedentes, até agora. Independente dos fatos, da autoria e dos atores envolvidos, o processo que iniciará, caso – e ceretamente será! – aceita a denúncia, estará configurado como um processo de inquisição promovido por um tribunal de exceção.

No artigo de hoje, trago uma reflexão crítica sobre o foro por prerrogativa de função — uma figura que, sob o pretexto de proteger a função pública, termina por subverter pilares essenciais do processo penal democrático. A ausência de duplo grau de jurisdição, o desvio de função dos tribunais superiores e a crescente confusão entre investigar e julgar são apenas alguns dos problemas estruturais que esse instituto revela. É hora de repensá-lo à luz dos princípios constitucionais que deveriam nortear o funcionamento da Justiça em um Estado de Direito.

FUNDAMENTAÇÃO DO FÓRUM POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

O fórum por prerrogativa de função é uma regra de competência jurisdicional consagrada na Constituição de 1988, aplicável a determinadas autoridades públicas, assegurando que elas sejam processadas e julgadas por tribunais superiores, e não pelo juízo natural de primeira instância. O instituto se fundamenta, tradicionalmente, na ideia de que determinadas funções públicas exigem proteção especial contra perseguições políticas e uso abusivo do Judiciário como ferramenta de desestabilização de agentes estatais.

No texto constitucional atual, vários dispositivos estabelecem esse privilégio, atribuindo a competência originária para o julgamento de altas autoridades ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), aos Tribunais Regionais Federais e aos Tribunais de Justiça Estaduais.

Entre as principais normas que conferem essa prerrogativa, destacam-se:

  • Art. 102, I, “b” da Constituição Federal (CF) – Competência do STF para julgar o Presidente da República, o Vice-Presidente, membros do Congresso Nacional, ministros de Estado, entre outros.
  • Art. 105, I, “a” da CF – Competência do STJ para julgar governadores de Estado e outras autoridades.
  • Art. 29, X da CF – Julgamento de prefeitos pelos Tribunais de Justiça estaduais.

A justificativa original para a existência desse instituto sempre esteve vinculada à necessidade de garantir independência aos ocupantes de funções públicas elevadas, impedindo que juízes de primeira instância, eventualmente sujeitos a influências locais, tomassem decisões motivadas por interesses políticos.

CRÍTICAS AO FÓRUM POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Nos últimos anos, o foro privilegiado tem sido alvo de críticas contundentes por acadêmicos, juristas e pela própria sociedade civil, sendo considerado um dos mecanismos mais perversos de impunidade dentro do sistema judicial brasileiro. Entre os principais argumentos contrários ao instituto, destacam-se:

  1. Instrumento de Impunidade

    • O foro por prerrogativa de função tem sido amplamente criticado por propiciar a morosidade processual, uma vez que tribunais superiores, como o STF, não são estruturalmente preparados para lidar com a instrução probatória de processos criminais. Isso gera frequentes arquivamentos, prescrições e dificuldades na obtenção de condenações.
    • Muitos processos que envolvem autoridades permanecem anos sem julgamento, o que acaba favorecendo a prescrição de crimes.
  2. Desigualdade Perante a Lei

    • O princípio da isonomia é gravemente ferido pelo foro privilegiado, pois cidadãos comuns são julgados em instâncias inferiores e respondem rapidamente a processos, enquanto autoridades contam com tribunais superiores que impõem obstáculos à persecução penal.
    • A seletividade no acesso à Justiça é uma afronta ao princípio republicano, que deveria garantir tratamento igualitário para todos os indivíduos.
  3. Desvio da Função dos Tribunais Superiores

    • O STF e o STJ são órgãos voltados essencialmente para a interpretação da Constituição e da legislação federal, e não para a análise fática e probatória de crimes comuns. A sobrecarga desses tribunais com processos criminais de autoridades inviabiliza sua atuação primordial como cortes de precedentes e garantidoras da estabilidade do ordenamento jurídico.
    • A atuação dos tribunais superiores como primeira instância criminal prejudica a celeridade processual e compromete sua função essencial de uniformização da jurisprudência nacional.
  4. Manipulação Política e Mudanças Oportunistas de Foro

    • A prerrogativa de foro permite que investigados manipulem a competência jurisdicional ao assumirem novos cargos, forçando mudanças de tribunal para evitar decisões desfavoráveis.
    • O deslocamento de processos entre instâncias, motivado por mudanças de cargo, gera insegurança jurídica e atrasos nos julgamentos.
  5. Interpretação Restritiva do STF e Reforma Constitucional

    • Em 2018, o STF restringiu a aplicação do foro privilegiado para parlamentares federais, limitando-o apenas aos casos de crimes cometidos durante o mandato e em razão do cargo. No entanto, essa limitação não abrangeu governadores, prefeitos, ministros de Estado e outras autoridades.
    • A reforma constitucional para extinção total do foro ainda se faz necessária, pois a restrição imposta pelo STF é insuficiente para corrigir as distorções do sistema.

Ocorre que, assim como pode haver morosidade em determinados processos, que redundam em prescrição, o fator político pode acelerar a instrução e o julgamento de casos recentes, conforme “conveniência superior”, “furando” a fila e deixando tantos outros processos para trás. São os casos dos acusados pela “tentativa de golpe” do 08 de janeiro, com vários já sentenciados. Ainda como argumento, temos o mencionado procedimento contra Jair Bolsonaro e aliados, cujo rito acelerado, tanto pela Procuradoria Geral da República, quanto pela Primeira Turma do STF, certamente resultará, na próxima semana – 24 a 28 de março de 2025 – em uma ação penal contra Bolsonaro e os demais, sendo julgada antes do final do ano, portanto, antes de 2026, ano de eleições.

JUSTIFICATIVA PARA A EXTINÇÃO DO FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é o princípio do duplo grau de jurisdição — a garantia de que toda decisão judicial possa ser revista por uma instância superior, assegurando maior controle e justiça no processo. Essa lógica, no entanto, é frontalmente violada pelo chamado foro por prerrogativa de função, uma anomalia jurídica que consagra o privilégio em detrimento da igualdade e da efetividade processual.

A ideia de submeter autoridades de determinados cargos diretamente ao julgamento por tribunais superiores pode parecer, à primeira vista, uma forma de garantir isenção e segurança institucional. No entanto, na prática, esse modelo mina princípios constitucionais fundamentais, subvertendo a lógica republicana e favorecendo a impunidade.

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, não é — nem jamais foi — uma instância de instrução criminal. Ele é um órgão de cúpula do Judiciário, cuja missão é exercer o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, não a condução de investigações criminais. O mesmo vale para o Superior Tribunal de Justiça, cuja função precípua é uniformizar a interpretação do direito federal. Ambos são tribunais recursais por excelência, pensados organicamente para julgar questões de direito, e não para atuar como juízo de primeira instância.

Quando se atribui a essas Cortes o papel de processar e julgar originariamente ações penais, inclusive realizando a instrução probatória, cria-se um desvio de função institucional que compromete gravemente a qualidade da prestação jurisdicional. Não apenas pelo volume e complexidade técnica das demandas — para as quais não têm estrutura nem vocação — mas principalmente porque não há instância recursal das decisões proferidas por esses tribunais quando atuam originariamente. O réu “privilegiado”, em caso de condenação, não pode apelar. E, se for absolvido, o Ministério Público tampouco pode recorrer. O que se quebra, aqui, é justamente a lógica do duplo grau de jurisdição.

Pior: há casos em que o próprio Supremo Tribunal Federal assume funções investigativas, como no polêmico Inquérito das Fake News, instaurado de ofício e conduzido no âmbito do STF, sem a participação do Ministério Público na fase inicial. A Corte passa a atuar simultaneamente como delegado, promotor e juiz, numa configuração que fere de morte os princípios da imparcialidade, da ampla defesa e do devido processo legal. A fase investigatória, que deveria ser administrativa e pré-jurisdicional, é absorvida pelo próprio órgão de julgamento, numa confusão de papéis inadmissível.

Diante das críticas e da ineficiência do modelo vigente, justifica-se a extinção total do foro por prerrogativa de função, permitindo que todas as autoridades sejam julgadas desde a primeira instância, sem qualquer diferenciação em razão do cargo, seguindo outros Estados democráticos de Direito, a exemplo dos Estados Unidos, onde ao atual presidente Trump têm sido impostas decisões de “juizecos” – parafraseando o senador Renan Calheiros. Essa mudança se fundamenta nos seguintes pilares:

  1. Adoção do Princípio do Juiz Natural

    • A extinção do foro privilegiado permitirá que os julgamentos sejam conduzidos pelo juiz competente da comarca onde ocorreu o fato, garantindo imparcialidade e efetividade da persecução penal.
  2. Maior Celeridade Processual

    • A instrução probatória será conduzida de forma mais ágil nas instâncias ordinárias, evitando o congestionamento dos tribunais superiores e reduzindo a impunidade decorrente da morosidade processual – dúvidas, neste caso. Mas de qualquer forma, haverá sempre uma instância superior a recorrer.
  3. Igualdade de Tratamento

    • Ao submeter todas as autoridades ao mesmo regime processual dos cidadãos comuns, haverá maior equidade na aplicação da Justiça, eliminando privilégios indevidos.
  4. Fortalecimento da Credibilidade do Judiciário

    • O fim do foro por prerrogativa de função reforçará a confiança da sociedade na independência do Poder Judiciário, eliminando suspeitas de favorecimento e influência política nos julgamentos de autoridades.

Defender a extinção ou profunda revisão do foro por prerrogativa de função não é atacar as instituições — ao contrário, é fortalecê-las com os princípios da igualdade, da impessoalidade e da justiça processual. É devolver ao processo penal sua lógica de controle, seu compromisso com a imparcialidade e sua abertura à revisão das decisões, sem blindagens indevidas. Enquanto a elite política e jurídica continuar sendo julgada por tribunais que não permitem recurso, a democracia seguirá mancando — com um olho vendado para os privilégios e outro, míope, para os direitos.


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