1. Introdução: A Unicamp e a nova fronteira da política identitária
No dia 1º de abril de 2025, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovou, por unanimidade, a criação de cotas específicas para pessoas trans, travestis e não-binárias em seus cursos de graduação. A medida prevê ao menos uma vaga para esses grupos em cursos com até 30 vagas regulares, e duas vagas para cursos mais concorridos — metade delas reservada a candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, medalhistas e alunos de escola pública, sendo que estes últimos são bonificados com até 60 pontos pelo Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social[1]. A seleção inclui autodeclaração e relato de vida avaliado por comissão.
Apresentada como um avanço civilizatório e uma reparação histórica, fruto de manifestações dos alunos, a decisão levanta também questionamentos profundos sobre os rumos da universidade pública, o papel da identidade nas políticas públicas e os limites da engenharia social por via institucional. Estamos diante de um novo paradigma político-educacional, sustentado por uma matriz ideológica que se aproxima daquilo que se convencionou chamar de cultura woke, que surgiu nas comunidades afro-americanas nos Estados Unidos, com a expressão “stay woke” – permaneça acordado – como um alerta para manter-se atento às injustiças e desigualdades sociais, propondo uma releitura da sociedade a partir de identidades interseccionais — como gênero, sexualidade, raça e etnia —, desafiando normas históricas e estruturas tidas como opressoras. Essa visão encontra solo fértil nas universidades, que, em nome da inclusão, tornam-se laboratórios de transformação cultural. Não se trata apenas de corrigir injustiças históricas, mas de reconfigurar o próprio imaginário social sobre mérito, igualdade e justiça.
É neste ponto que se revela a atualidade do pensamento de Antonio Gramsci (1891–1937). O filósofo marxista italiano não pregava a tomada revolucionária do poder pela força, mas sim a conquista da hegemonia cultural: a capacidade de um grupo impor seus valores como senso comum por meio das instituições — entre elas, a escola e a universidade. Para Gramsci, controlar a cultura é controlar o futuro. A classe dominante mantém seu poder não só pela força, mas pela hegemonia cultural — ou seja, pela naturalização de seus valores como senso comum. Essa ideia serviu de base para pensadores posteriores que passaram a ver a cultura como campo central da disputa política. O movimento woke, ao buscar transformar a linguagem, a mídia, a educação e os padrões simbólicos, opera na lógica gramsciana de subversão da hegemonia dominante. A diferença fundamental é que Gramsci pensava em termos de classe social, enquanto o wokismo opera via identidades interseccionais (raça, gênero, sexualidade etc.).
Ao aplicar a lógica gramsciana às práticas contemporâneas da cultura woke, percebe-se que as novas políticas identitárias não são apenas medidas administrativas: são instrumentos de disputa simbólica, que pretendem moldar uma nova ordem social baseada em narrativas específicas de opressão e representatividade. Nesse processo, conceitos clássicos como universalidade, mérito e neutralidade institucional são frequentemente colocados sob suspeita — ou mesmo rejeitados.
O caso da Unicamp, portanto, não é isolado: é sintoma de uma virada cultural mais ampla, onde instituições do saber passam a operar como vetores de um novo projeto civilizacional. Um projeto que se pretende inclusivo, mas que levanta tensões entre igualdade de condições e privilégio de identidades, entre justiça social e relativismo moral, entre diversidade e fragmentação.
A partir deste cenário, esta matéria propõe uma análise crítica, plural e fundamentada da cultura woke — sua genealogia intelectual, seus principais pensadores, seus pilares ideológicos, seus impactos na política e na sociedade, bem como suas contradições internas e seus efeitos práticos.