Hoje, 27 de abril, são lembrados no mundo todo os mais de 6 milhões de judeus exterminados na Segunda Guerra Mundial pelo regime nazista. Vários eventos marcam as homenagem às vítimas do holocausto. O neologismo genocídio foi criado pelo advogado e poliglota judeu Raphael Lemkin (1900-1959), extraído do grego antigo genos (raça, tribo) e do latim cídio (assassinato), conforme descreve em seu livro Axis Rule in Ocupied Europe[1], pela falta de um termo adequado para descrever a barbárie[2] sofrida pelo povo judeu e outros povos, como os russos no período stalinista e os chineses durante o maoísmo.
Francamente, não sei se o negacionismo do presidente Bolsonaro e seus seguidores com relação à pandemia da COVID-19 pode ser considerado genocídio. Mas há justa motivação para acusá-lo de genocídio em relação aos indígenas da Amazônia brasileira, não necessariamente por atos comissivos, mas por sua conduta omissiva, pois a passividade do Governo Federal no caso das invasões garimpeiras ilegais nas áreas ocupadas por essas populações está levando ao verdadeiro extermínio daqueles povos – embora o uso geral e indiscriminado do mercúrio nos rios atinja não só os indígenas, mas também os não-índios habitantes dos centros urbanos. E, claro que o descaso não começa com este governo, mas é agora que as coisas estão alcançando proporções de maior amplitude, numa descarada passividade institucional, ao que nos parece, com ânimo doloso.
Ontem, 26, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Codisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami, denunciou, visivelmente emocionado, a barbárie do estupro e assassinato de uma pré-adolescente com idade entre 11 e 12 anos, e o desaparecimento de um menino de três anos:
“Eu acabei de receber informações do meu povo ianomami[1] da comunidade Aracaçá. Me falaram que os garimpeiros invadiram a comunidade, levaram uma mulher e um adolescente; a adolescente tinha 11, 12 anos de idade. Os garimpeiros estupraram ela, e ocasionou o óbito. O corpo da adolescente está na comunidade. Ainda me informaram, também há uma criança com a mulher que foi levado junto, a criança está desaparecida dentro do rio. Comunico às autoridades, Ministério Público Federal, Polícia Federal, Exército: vá à comunidade, e amanhã também irei á comunidade buscar o corpo de uma mulher, uma adolescente, que os garimpeiros ocasionaram o óbito por violência. Tô muito triste que está acontecendo isso com o meu povo.”
Nós sabemos que seria possível a criança de três anos também ter sofrido abuso sexual, o que não seria novidade. Durante os anos em que fui jornalista aqui em Roraima, ouvi vários relatos, tanto de indígenas, quanto de policiais, de estupros de crianças na mais tenra idade, de ambos os sexos, em áreas de garimpo nas comunidades indígenas.
O mais cruel de todos foi o relato de um policial federal, no início da década de 90 do século passado, do qual já não lembro o nome nem a fisionomia, ao certo. Me relatou que, numa busca na floresta, ele e os companheiros ouviram gemidos. Seguiram o som e encontraram um garimpeiro estuprando um menino de aproximadamente cinco anos. Outro, uma menina de uns oito anos, já morta, enquanto um terceiro “esperava a sua vez”. “Foi estarrecedor”, me contou o policial. Com o flagrante, os dois homens soltaram suas vítimas. O menino, esvaído em sangue, já quase sem sentido. Um dos agentes federais, já exaltado, acusou os autores de rapto das crianças “para cometer aquela atrocidade”. O que estava com o menino retrucou: “Não! Nós compramos!”. E o policial me relatou o desfecho que foi, simplificadamente: “As crianças foram pro céu e os demônios pro inferno”.
Ao que nos parece, tanto quanto no caso da pandemia, o nosso presidente não guarda nenhuma empatia com aqueles seres humanos. Sei que é difícil para quem, agora, está tomando um scotch envelhecido contemplando as belas praias de Copacabana ou Ipanema, imaginar a baixíssima qualidade de vida dos índios amazônidas. E não estou falando da falta de água potável, energia elétrica ou internet. Me refiro a assassinatos sequenciais, estupros, severa depredação do meio ambiente – com o qual interagem como parte do sistema – transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, doenças virais cujas imunidades não foram desenvolvidas por esses grupos étnicos, principalmente os com pouco ou nenhum contato, até então, com os não-índios.
Ainda nesta quarta-feira, 27, uma delegação formada pela Polícia Federal, FUNAI – Fundação Nacional do Índio, e pelo Ministério Público Federal, acompanhada pelo presidente do Codisi-YY, Júnior Hekurari Yanomami, embarcou rumo à comunidade Aracaçá, na região Waikás, aqui no Estado de Roraima, para apurar a denúncia e tentar trazer o corpo da menina para autópsia no Instituto Médico Legal de Boa Vista.
Deixo aqui consignada a minha indignação com a omissão das autoridades federais em relação aos desastres ecológico e humanitário que estão acontecendo nas áreas indígenas, não só de Roraima, mas de toda a Amazônia brasileira. E também com a omissão da “grande imprensa” nacional, que desabou no charco da mediocridade. O discurso “desenvolvimentista” do Governo Federal é burro, estúpido e retroage à primeira Revolução Industrial, quando a mentalidade era o ganho imediato, em detrimento do meio ambiente e da qualidade de vida, ou seja, uma mentalidade de quase 300 anos atrás.
Não é destruindo o meio ambiente: os rios, a floresta – a biodiversidade – que vamos enriquecer o País e os garimpeiros. Não é o genocídio da população indígena amazônica que vai resolver o problema do subdesenvolvimento brasileiro, abrindo espaço para a exploração garimpeira indiscriminada, gerando riqueza. Em Roraima nós temos expertise nisso. Sabemos que o garimpo só trouxe bolsões de pobreza e criminalidade para o nosso Estado. Toda a riqueza gerada foi etérea, com uns pouquíssimos enriquecidos, e estes indo embora para os grandes centros, deixando por aqui o caos humanitário. O próprio garimpeiro, em última análise, é vítima, embrutecido, animalizado pela vida infernal.
Por fim, é um erro crasso compararmos este pico de garimpagem predatória atual, com o surto vivido na década de 80 e início da década de 90 do século XX. É mais do que evidente que este movimento é financiado e gerenciado pelo crime organizado, pelo tráfico. Vai ser difícil acabar com isso. Diria que uma missão hercúlea, quase impossível. Isto é: seria!, caso as autoridades brasileiras, personificadas no atual presidente da República, tivesse vontade e iniciativa política. Mas, pelo que tudo indica, isto não acontece, seja por pura estupidez, ausência de visão social e econômica, ou ainda, quem sabe, por dolo mesmo, pelo animus delinquendi, iter criminis para a solução final do povo indígena da Amazônia.
[1] De nossa parte, preferimos manter a grafia “ianomami”, ao invés de Yanomami.
[1] Regras do Eixo na Europa ocupada
[2] Termo este usado por Adorno (Theodor W: 1903-1969) e Horkheimer (Max: 1895-1973)