O texto que reproduzo ao final é da autoria do nosso convidado de hoje, o Doutor (com doutorado mesmo!) em robótica Flávio José Soares Aguiar, o qual já nos brindou anteriormente com um texto sobre Nicolau Maquiavel. A crônica foi escrita no intervalo entre a divulgação oficial da eleição de Jair Messias Bolsonaro e a sua posse na Presidência.

A existência deste escrito nos foi revelada numa conversa do grupo de WhatsApp que formamos entre amigos de infância/adolescência: Turma 63/65, pois todos os membros nasceram em 1963 e 1965. Somos, portanto, todos cinquentões. Bem, o Flávio compartilhou o texto no grupo quando eu reclamei que as atitudes do Presidente, sobretudo em relação à pandemia do Corona vírus, associadas à anulação dos processos do ex-presidente Lula – que, ao menos por enquanto, torna-se elegível -, estão viabilizando a volta da esquerda. Eu revelava a minha preocupação com isso, conforme a transcrição de alguns trechos das minhas exposições na conversa, a seguir:

Aí o cara entra com uma ação pra derrubar os toques de recolher decretados pelos governadores dos estados que estão com os seus sistemas de Saúde colapsados. É um bufão!

(…)

Quem ainda vai acabar dando uma dura no Bolsonaro serão os militares. Eles não querem o Pazuello lá porque é da ativa. General três estrelas. Isso dificulta mais as coisas. Os generais da reserva têm outro tratamento, não impedem que o comandante do Exército tenha uma conversa de pé de orelha com um emissário do Presidente.

Essa ação do Bolsonaro é totalmente descabida. É pra enfrentamento, ruptura, o que é uma irresponsabilidade sem par, nessa altura do campeonato. Os militares não vão ficar com ele. Preferem o Mourão.

Juridicamente não faz sentido, porque o STF já decidiu pelo princípio federativo, no caso do combate à epidemia nas unidades da Federação.

(…)

Não estou dizendo que os militares vão derrubar o Bolsonaro. [Mas] Eles não vão dar o golpe nas instituições para que o Bolsonaro governe como ditador, que é o que ele quer. E os militares vão acabar assumindo, discretamente, esta postura, tipo o golpe da legalidade do Lott.

Vão dizer: “Presidente, não vai ter tanque na rua. Se o Congresso lhe cassar, assume o vice. Ou o presidente escolhido indiretamente pelo Congresso, como reza a Constituição – neste caso, supondo-se que, por algum motivo, o Vice Mourão não assuma a vaga, pois, em situação normal, é o sucessor natural do Presidente.

E chamo a atenção para a transcrição do áudio que eu enviei ao grupo, para consolidar o meu palpite:

Eu penso o seguinte: antes que o PT surja como uma opção a Bolsonaro, como Bolsonaro foi uma opção ao PT, e o Lula vire de novo o salvador da Pátria, eu prefiro que o Bolsonaro seja “impeachmado”, que ele saia, e assuma o Mourão. E o Mourão seja essa opção, porque eu não tenho nenhum voto de fidelidade incondicional ao Bolsonaro. Eu tenho pelo Brasil!! E ele era a opção de combate a essa porralouquice toda aí, que ainda está acontecendo. Tudo isso que a gente não quer mais. Já tá bom! Acabou PT, acabou esquerda – não digo eliminar a esquerda. A esquerda é bom que exista, é o alter ego. Porque ele [Bolsonaro] só está fortalecendo a esquerda, ele só tá fortalecendo o Lula. Então ele sai e assume o Mourão, que eu acho [de comportamento] razoável, e vamos ver se o Mourão salva o nosso projeto, se ele vai pra reeleição em 22 como candidato capacidado e viável pra ser reeleito, ou que surja outro nome razoável, decente, que não seja Lula, Haddad, Ciro Gomes… que a gente fuja dessa polarização. Então, eu tô começando a pensar nisso. Eu acho que a nossa alternativa, hoje, é o Mourão.

E foi então que surgiu o texto do Flávio, como já disse, escrito no espaço de tempo entre a eleição e a posse de Jair Bolsonaro. Cabendo salientar que aqui não se trata de ‘conspiração” contra o presidente. Se trata de brasileiros, contribuintes, pensando e discutindo o presente e os rumos deste país, que está perdendo mais de dois mil cidadãos por dia, fora os óbitos causados pelas outras causas – câncer, AIDS, coração, diabetes, acidentes -, que também estão se agravando, pois todo o esforço da Saúde está concentrado na guerra à pandemia, e o presidente da Nação insistindo no negacionismo da doença. Onde já se viu dizer que é frescura, mimimi, o pranto desta Nação pelos seus mortos: cônjuges, genitores, irmãos, sobrinhos, filhos, netos, amigos… sem qualquer empatia com o sofrimento dos que se vão e dos que ficam?

Eu vivi no período militar. Se fosse hoje, estaríamos em plana campanha nacional de vacinação em massa, em ritmo acelerado, não a passo de cágado paraplégico – quem lembra da vacina contra meningite? Haveria hospitais de campanha montados em todas as partes, em todos os lugares. Não é saudosismo, é a lembrança da operacionalidade dos militares de antigamente. Será que os milicos daquele tempo eram mais inteligentes e mais bem preparados do que os de hoje?

Vamos discutir a questão econômica e a corrupção nas administrações estaduais e municipais no período da pandemia em outro post. Ao texto do Flávio:

JMB

Quando se vive um pouco mais, acontece de você lembrar fatos ocorridos além da curva do horizonte. Só aqueles que compartilharam os anos passados é que serão capazes de invocar a mesma percepção sua, mesmo que discordando da sua visão acerca do acontecido.

Existiu um tempo, há muito, muito tempo passado, em uma galáxia muito, muito longe, onde havia um reino de criaturas misteriosas. Elas eram amarelas, em sua grande maioria, mas havia duas minorias que debatiam entre si, sendo estas vermelhas e seus antagonistas verdes. Tais criaturas passavam a vida discutindo quem possuía a visão de mundo que julgavam, cada uma a sua maneira, a justa forma de se viver em sociedade.

Parte dos vermelhos lançou uma agremiação em torno da qual erguiam suas bandeiras de lutas. Eles se autoproclamaram como o partido da ética na política. E assim, tomados por corações e mentes, unidos em torno de ideais utópicos, se lançaram à luta de convencer a grande maioria amarela de que eles eram os reais portadores de verdades celestes, somente a eles reveladas e que brandir a bandeira vermelha era a verdadeira e única possibilidade de construção do futuro digno, sendo absolutamente necessário compartilhar sua visão de mundo e marchar rumo ao destino glorioso, mas apenas através da luta seria possível alcançar o nirvana previsto pelos iluminados idealizadores.

Aos vermelhos cabia encampar outras minorias ainda mais excluídas, como os sem-terra, sem teto, das mulheres desamparadas e de seus filhos perdidos num mundo mal onde muito pouca esperança havia. Tudo o que defendiam era belo e de sublime pureza. De modo que o sangue juvenil de suas virtudes era justo e santo, não podendo haver causa mais nobre e distinta. Sim! eles eram os legítimos portadores do estandarte de Rilke, dos poemas de Bertold, das músicas de Chico e das armas de Marighela.

Aos verdes cabia a ingrata tarefa de governar. De evitar que guerras externas virassem guerras internas. Acreditavam que deviam proteger os amarelos da epidemia vermelha para que não fossem todos arrastados para a guerra fratricida. Governar se mostrou ser uma tarefa árdua, mas os verdes amavam o que era árduo e à frente se puseram, suas armas eram muitas e maiores. Mas os verdes eram lentos, defendiam ideias antigas. De que eram um povo, um único povo, e que por isso mesmo precisavam se defender das ameaças externas. Nisso, sangue vermelho escorreu de mãos verdes.

Curiosamente, isso foi glorioso tanto para verdes como para vermelhos, pois para os verdes o sangue derramado era decorrência da luta que briosamente travaram para defender o povo e sua bandeira única. Para os vermelhos o sangue derramado era a glória da glória, pois justificava, mais que tudo, a luta: o mais sublime símbolo de que a justiça era sua. O sangue derramado era o cumprimento da divina profecia. Do necessário holocausto no altar da história. A cada um que tombava, a multidão de combatentes entoava o sagrado mantra, a luta continua companheiro!

O tempo passou. Os verdes viram que governar era árduo, mas não apenas árduo: era insidiosamente perigoso. Governar era escorregadio e pragmaticamente falso, pois o governante era aclamado pela frente e odiado por detrás. Os verdes não foram treinados para lutar em terreno movediço e seus tanques eram pesados e lentos, antigos e duros. Suas verdades tradicionais, conservadoras, pareciam envelhecidas. Então aconteceu o que muitos queriam, mas ninguém realmente esperava. Os verdes deixaram de governar e se retiraram para os seus agrupamentos. Contavam glórias para si, e somente para si seus heróis cantavam.

Criaturas dos mais diversos tons exultaram e assumiram o poder. Astuciosas velhas raposas, outrora amigas dos verdes, fizeram a transição. As raposas riam, ah como riam! Os vermelhos assumiram o poder – vestidos de ovelhas azuis, é verdade. Mas isso era apenas o método das velhas raposas. Depois vieram os vermelhos vermelhos, os vermelhos do b e toda a multidão de iluminados exultou.

Então coube aos vermelhos governar. Operar em terreno pantanoso, escorregadio e insidiosamente perigoso. As velhas raposas mudavam de cor, pois gostavam de governar. Para elas governar era saborosamente divertido e enganar era o seu hábito preferido, de modo que a adrenalina do perigo era transmutada em lucro, sendo que a única coisa necessária era um ministro da propaganda e todo o povo viveria contente. As raposas riam, ah como elas riam.

Os vermelhos então começaram a governar. O futuro estava próximo. Era necessário apenas que se realizassem pequenas reformas, cada uma a sua vez. Novas ideias iriam substituir as velhas ideias. As minorias das minorias das minorias seriam finalmente ouvidas, teriam terra, teto e bolsas para mitigar dívidas históricas.

E assim foi feito. Terra, teto e bolsa passaram a ser as novas moedas. O futuro finamente havia chegado. Os campos onde brotavam leite e mel, rio abaixo. E assim foi por alguns anos. Mas governar, para os vermelhos, também se mostrou uma tarefa árdua, e aparentemente os vermelhos não amavam nada que fosse árduo – embora até se movessem bem no terreno pantanoso e escorregadio. As raposas, sempre ardilosas, continuavam por ali. As raposas riam, ah como riam. Raposas vermelhas agora eram realidade. Fato é que os vermelhos meteram os pés pelas mãos e dobraram a meta, armazenaram vento e colheram tempestade.

Governar se mostrou uma tarefa árdua, muito árdua. Mas o problema não foi esse, o problema foi astutamente disfarçado. O vinho virou água depois que o porre assolou os que governaram. Acreditaram realmente que, aclamados pela frente, não seriam odiados por trás. A bandeira da justiça enlameada ficou. O brilho e o brio vermelho esvaneceram. Tornaram-se judicialistas.

Passaram a se esconder atrás de milhões de leis para defender seus ideais, que agora estavam perigosamente envolvidos em tenebrosas transações. O carnaval havia passado. A tempestade veio e varreu os vermelhos do governo, mas agora eles não queriam o governo, queriam o poder, pois isto lhes era merecido por direito divino. Seu destino-manifesto.

E os amarelos? Ah, os amarelos… os mais abastados, esses pagavam impostos. E os desfavorecidos? Esses pegavam o trem da história, que lhes levava de subúrbio em subúrbio e de vez enquanto trocavam uma raposa por outra, uma igreja por outra, uma história por outra. Só não trocavam de sorte e sina.

Fim da fábula que não tem fim.

De volta aos nossos dias. O pensamento tacanho, mas cheio de boa vontade de Jair Messias Bolsonaro, arraigado às ideias conservadoras, à defesa da família, dos valores judaico-cristãos, é muito melhor que o mais belo dos sonhos dos iluminados da esquerda, para quem a fortuna lhes sorri novamente. Estes jamais esperaram um destino mais vibrante. Sua sorte não se compara à de um contemplado sozinho na mega-sena da virada.

O Messias é o moinho de vento jamais sonhado pela companheirada. Aquele que será capaz de entronar novamente o manto verde oliva. Os verdes voltaram! Finalmente voltaram! Oh inimigo dos sonhos! As mais legítimas lágrimas de alegria devem ser vertidas no dia de sua posse. Três minutos de ódio para unir as fileiras, renovar os ânimos e retomar as forças.

Enfim, será possível passar a tempestade e retornar à história do sonho e do sangue juvenil novamente. Não, a história não será revivida como farsa. O partido da ética na política voltará! Nunca antes na história desse país será tão necessário montar frentes democráticas contra o discurso de ódio do opressor racista, homofóbico e misógino!

Jair Messias Bolsonaro é, em sua luta contra o ideário da esquerda, o fogo da fênix para o renascer das cinzas a bandeira vermelha. A cada palavra sua pronunciada, milhares serão escritas na desconstrução do discurso “fascista”. Cada ato seu terá de ser sabotado, deslegitimado, diminuído. Governar é árduo e ele terá que caminhar em terreno pantanoso, escorregadio, insidiosamente enganador, cercado de velhas raposas ardilosas que riem, ah como riem. Terá que governar para um arco-íris de criaturas, empenhadas umas contra as outras cada uma ao seu modo. Reservar para si o único futuro que acham verdadeiramente correto. Como alento terá uma cicatriz no abdômen para lembrar, como o escravo de César que entra vitorioso em Roma, do que são feitos os homens.

Os amarelos observam. Da janela do carro, do ônibus, do trem, observam.

Flávio José Aguiar Soares