Em post anterior eu já abordei um dos aspectos técnicos que fundamentam minha posição sobre a possibilidade de cumprimento da pena após decisão em sede recursal da segunda instância: basicamente, porque a presunção de inocência, insculpida no inciso LVII, art. 5º da CF/88, é relativa ou condicionada até prova em contrário, e não implica, necessariamente, no não cumprimento da pena, mesmo que em caráter provisório. Neste artigo abordo o aspecto material do ordenamento jurídico em face da necessidade de resposta à sociedade, maioria quantitativa da população em um Estado cujas instituições têm sido geridas com foco no “direito das minorias” e usual descuido dos seus próprios deveres. Com efeito, no Brasil pós-Constituição Federal de 1988 passou-se a abordar o ordenamento jurídico como garantidor dos direitos individuais e coletivos, daí termos magistrados conhecidos como garantistas, caso do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal. A estes, o inciso LVII, art. 5º da CF, deve ser obedecido literalmente. Mas que literalidade é esta, uma vez que o dispositivo não expressa a impossibilidade da prisão, mesmo após a sentença de primeira instância? Eis o texto:
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
Como já observado, não vislumbramos o impedimento ao cumprimento da pena imposta por autoridade judiciária competente, em ordem escrita e fundamentada, após o devido processo legal com direito ao contraditório e ampla defesa – ex vi os incisos LIII, LIV, LV, LXI do mesmo art. 5º. Dizer que o supracitado inciso LVII, por si só, impede o cumprimento da sentença privativa de liberdade é interpretar extensivamente o texto constitucional, emprestando-lhe um alcance indevido. Sequer reporta à necessidade de esgotamento dos recursos, uma vez que perdido o prazo para interposição da apelação, por exemplo, a sentença já transita em julgado. Nesta esteira, é sabido que o ordenamento e o sistema judiciário integram o aparelhamento da função jurisdicional do Estado,que existe em virtude da impossibilidade legal da autotutela, o que nos remeteria aos tempos da barbárie. Daí à sociedade caber sempre uma resposta desse Estado-Juiz às suas demandas, na proporção da gravidade da conduta do agente, sob pena de ineficiência do sistema judiciário. E é a tal ineficiência e consequente ineficácia do ordenamento que levam à sensação da impunidade. Quando alguém mata, a sociedade quer vê-lo na cadeia, cumprindo pena. Da mesma forma, se o político é comprovadamente corrupto, apurado em devido processo legal, sendo-lhe assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa, confirmada a materialidade e autoria do crime, por que deixá-lo em liberdade enquanto busca e rebusca revisões relativas à formalidade processual? A sociedade – maioria – precisa de uma resposta à agressão sofrida. Então, quando um menor infrator ceifa a vida de outro ser humano e fica por isso mesmo, não incorrendo-lhe sequer a antecedência criminal, implica em demérito da maioria, que é o contribuinte mantenedor do Estado-Juiz. Trata-se de atitude absolutamente hipócrita, pois, no frigir dos ovos, o Estado não cumpre com o seu papel, seja na pretensão punitiva, seja no aspecto preventivo, patrocinando a impunidade e a injustiça, pois abandona o seu cidadão às ações do crime organizado, aqui incluindo o tráfico e as milícias, deixando que sejamos um dos países mais violentos do mundo, enquanto propaga discursos que combatem o efeito a não a causa. É usual entre os defensores da prisão somente após a última decisão transitada em julgado argumentos como o vertiginoso aumento da população carcerária e as péssimas condições dos presídios, “verdadeiras escolas do crime, em que o indivíduo sai bem pior do que entrou”. Ora, população carcerária tem correlação linear com o quantitativo populacional e os índices de violência no país. Estamos entre as cinco maiores populações carcerárias do mundo? É o que revela matéria veiculada na revista ISTOÉ, com números de 2016:
“A população carcerária chegou a 726 mil e se tornou a terceira maior do mundo, ultrapassando a da Rússia, que é de pouco mais de 607 mil. Neste ano, o Brasil ficou atrás de Estados Unidos, que tem mais de 2 milhões de presos, e China, com mais de 1 milhão e 600 mil pessoas encarceradas. O número de vagas, por sua vez, está estagnado e alcança apenas a metade. Para cada vaga individual, há duas pessoas detidas. Comparada com 1990, quando inicia a série histórica informada pelo Ministério da Justiça, a população carcerária foi multiplicada em 8 vezes, saltando de 90 mil para 726.712 mil pessoas, sendo que no mesmo período a população nacional cresceu apenas 39%. Os números incluem pessoas presas por condenação e também as que ainda não passaram por julgamento.”
“Em junho de 2016, eram 726.712 mil presos, sendo 689.510 no sistema penitenciário dos Estados, 36.765 nas Secretarias de segurança/Carceragens de delegacias e 437 no sistema penitenciário federal. O Infopen é realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen).”
O Brasil prende muito? Como já afirmamos, é fato correlato, pois estamos entre as cinco maiores populações do mundo e entre os 10 mais violentos países do mundo. Segundo a BBC Brasil, das 50 cidades mais violentas do mundo, 17 ficam no Brasil, com altíssimo percentual de impunidade:
“O crescimento da violência em cidades menores – e, sobretudo, do Norte e Nordeste brasileiros – alarma especialistas há mais de uma década. Como o Brasil não investiga seus homicídios (mais de 90% deles ficam impunes), é difícil identificar com total certeza as relações de causa e consequência no que diz respeito à violência urbana.”
Isto significa que a população carcerária deveria ser ainda muito maior. Neste ponto eu concordo que o Brasil prende mal. Muito mal mesmo. Sendo redundante: faltam vagas nos presídios, o que resulta na alta densidade populacional carcerária. A realidade dos presídios transforma seres humanos em animais irracionais, ao invés de reabilitá-los. E a resposta esperada pela sociedade é a reabilitação e ressocialização dos seus membros, ao invés da marginalização irreversível, que não é a resposta devida. Ministros do Supremo usarem dados estatísticos e discursos repetitivos para defender a prisão após última decisão só beneficia endinheirados que podem pagar honorários milionários a bancas de primeira grandeza, pois me arrisco a afirmar que mais de 90% da população brasileira – a maioria – não tem como custear infindáveis recursos conduzidos por medalhões da advocacia até à última lavra da Corte Suprema. A prevalecer a mudança do entendimento vigente do Supremo, carimba-se, assim, salvo-conduto para a impunidade. É o Brasil das minorias.