Porta dos Fundos, Jesus Gay e a mediocridade contemporânea

Recentemente reli O Anticristo, de Nietzsche[1]. Devo ler uma terceira vez. Trata-se de uma contundente crítica ao cristianismo, mal interpretada por muita gente. É um livro curtinho, não mais de 70 páginas, ao todo. Mas o seu conteúdo é forte e envolvente, devendo ser lido com muita atenção. Foge aos tabus da crença e religião, vai direto à análise do pensamento ocidental que se moldou a partir da adoção do cristianismo como religião oficial do Estado romano. Peço desculpas ao leitor para transcrever a tradução do prefácio da obra:

“Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo. É possível que se encontrem entre aqueles que compreendem o meu “Zaratustra”: como eu poderia misturar-me àqueles aos quais se presta ouvidos atualmente? – Somente os dias vindouros me pertencem. Alguns homens nascem póstumos. As condições sob as quais sou compreendido, sob as quais sou necessariamente compreendido – conheço-as muito bem. Para suportar minha seriedade, minha paixão, é necessário possuir uma integridade intelectual levada aos limites extremos. Estar acostumado a viver no cimo das montanhas – e ver a imundície política e o nacionalismo abaixo de si. Ter se tornado indiferente; nunca perguntar se a verdade será útil ou prejudicial… Possuir uma inclinação – nascida da força – para questões que ninguém possui coragem de enfrentar; ousadia para o proibido; predestinação para o labirinto. Uma experiência de sete solidões. Ouvidos novos para música nova. Olhos novos para o mais distante. Uma consciência nova para verdades que até agora permaneceram mudas. E um desejo de economia em grande estilo – acumular sua força, seu entusiasmo… Auto-reverência, amor próprio, absoluta liberdade para consigo…

Muito bem! Apenas esses são meus leitores, meus verdadeiros leitores, meus leitores predestinados: que importância tem o resto? – O resto é somente a humanidade. – É preciso tornar-se superior à humanidade em poder, em grandeza de alma – em desprezo…

Friedrich Nietzsche

A princípio, considero o prefácio a melhor parte do livro, a pedra angular conceitual de toda a obra – toda a obra do autor, não somente desta em particular. Me identifico muito com a descrição do leitor de Nietzsche, com um porém a ressaltar: durante o caminho, em alguns pontos, tenho me deixado pender pela mediocridade, me excluindo, portanto, desse perfil. Este prefácio, pois, me fez despertar pra isso: alguém que desde cedo procurou distinguir a religião da crença, das convicções filosóficas, do entendimento da composição científico-tecnológica, colocando a religião em segundo plano, mas que em alguns momentos esqueceu de praticar tal determinação. O que realmente importa são as convicções internas, resultado do processo evolutivo da mente, da razão, da inteligência[2], do conhecimento das leis naturais: Física, Biologia, Química…

Diante da compreensão de tudo isso, os “milagres” caem no ridículo, assim como, a crença num Deus antropomórfico. A evolução universal não exclui Deus, no sentido de causa primária, de origem – ao contrário! Torna toda a criação, do macro ao microcosmo, muito, muito mais fascinante e maravilhosa. O criacionismo, sim!, reduz toda a inconcebível maravilha da evolução do Universo ao medíocre e exíguo limite da percepção humana. E o pior ainda com relação a Deus!! Como podemos nós nos atrevermos a descrever Deus??? Determinar o que Ele pensa, o que gosta, o que elege? É claro que este papel, que é o da religião desde tempos imemoriais, é de puro domínio da humanidade, humanidade esta que se deixa dormitar nos berços da fé, por ser muito mais confortável do que sair da caverna e conhecer, por si próprio, a luz do sol.

Ah, e quanto ao Porta dos Fundos, usado como referência no título desta crônica? – me pergunta com propriedade o leitor. Sim, sim! A trupe está relacionada com a mediocridade artística e cultural das últimas décadas, no Brasil e no mundo, fantasiada de liberdade de expressão. A clássica sátira foi degrada ao vômito de meros bufões. Não há crítica no enredo, nos textos enquadrados, mas tão somente a expressão do vazio intelectual de autor, ator e espectador. E antes que o leitor reaja, faço o alerta: esta crítica não é minha, é de Nietzsche, ao tempo d’O Anticristo – 1888:

“Pelo que aqui se entende como progresso, a humanidade certamente não representa uma evolução em direção a algo melhor, mais forte ou mais elevado. Este “progresso” é apenas uma ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa. 0 Europeu de hoje, em sua essência, possui muito menos valor que o Europeu da Renascença; o processo da evolução não significa necessariamente elevação, melhora, fortalecimento.”

Em analogia, podemos trazer a assertiva acima para os nossos dias: a era da informação, da abundância de conhecimento, não necessariamente significa a consequente evolução da razão, da compreensão das coisas. A disponibilidade do saber não necessariamente significa usá-lo como meio para gerar novos conhecimentos. Aliás, em grande parte esse conhecimento disponível na rede mundial de computadores, por exemplo, é vilipendiado; as pessoas o ignoram e continuam voltadas para a parede da caverna escura. Usam o meio de transmissão da informação mais genial já inventado para veicular velhos axiomas, crenças cristalizadas pela ignorância. Mas há um agravante: hoje qualquer idiota pode ser um digital influencer e conduzir um rebanho de imbecis repetindo memes que expressam a degeneração cognitiva da humanidade.

[1] Friedrich Nietzsche (1844-1900). Filósofo, filólogo, poeta e compositor alemão.

[2] Usamos termos sinônimos para enfatizar.

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