A GUERRA DOS GAMBITOS

ANTIGA MÁQUINA DE ESCREVER OLIVETTI LINEA 98 - No estad

O repórter sentou-se à mesa. Apoiou a cabeça com a mão direita, expressando perfil de lamento. Olhou para a olivetti à sua frente. A velha companheira de trabalho nunca lhe parecera tão distante, tão ensimesmada. Tantas vezes suas teclas ditaram-lhe a pauta do dia, boa parte merecendo chamada de primeira página. Mas hoje…

Olhou para o maço de papel jornal ao lado da máquina. As folhas estavam em branco. Acabaram-se as laudas pautadas. Contraditoriamente, foi um alívio, pois agora tinha alguma coisa para teclar. Colocou a folha no rolo da máquina, ajustou o papel e bateu nove pontos, teclando 1 no décimo toque, e assim sucessivamente: 2 no vigésimo, e 3 no trigésimo. Ali estavam definidos os trinta toques da linha, e observou que o espaçamento entre as linhas já estava no número 2. Isto era importante, depois que se tornou free lancer: um dólar por lauda de 30 linhas, pagos tão logo o editor-chefe aprovasse o texto.

Mas o quê escrever hoje? Perdera o melhor amigo, há uma semana. E hoje, justamente hoje, a mulher daquele melhor amigo também morrera. Ela, a quem admirava em secreto, com aquele corpão de dar água na boca. Enquanto rezava para que se recuperasse, às vezes aquele diabinho lhe soprava no ouvido: “Agora é a tua vez! Quem sabe…?” – mas logo espantava o tal diabinho com o anjinho que dizia: “Não deveis cobiçar a mulher do próximo!” E então resolvia o conflito não dando ouvidos ao demônio, nem ao anjo. Só à sua consciência: “Eu vou dar tempo ao tempo. O futuro dirá!”

E o tempo logo respondeu. A moça, tão jovem e tão bela, também sucumbiu à maldita pandemia que assola a sua cidade. Assola o seu estado, o seu país; dizima a população mundial. Esta reflexão despertou-lhe profunda tristeza, ao mesmo tempo que rancor e ódio! “Quer saber? Vou meter o pau no presidente!” – mas olhou ao redor e todos os outros jornais e revistas estampavam críticas à condução da pandemia pelo presidente. “Vai ser inútil. Serei apenas mais um”, concluiu.

Pensou nas suas finanças. Tinha o suficiente pra não ganhar nada, hoje. E o chefe da redação tem sempre umas matérias frias guardadas na gaveta. Talvez até mesmo uma sua.

Então contemplou a olivetti, a fita preta e vermelha, os teclados. Se espreguiçou na cadeira, deu um profundo suspiro, ao tempo em que imaginava tudo aquilo que as pessoas estavam passando. Não se tratava só das mortes, mas de todo o sofrimento das vítimas do vírus maldito, que assumiam estado grave, tinham que ser intubadas, o que as colocavam na estatística dos 40% de óbito. Mas era isso ou entrar para os 100%.

Imaginou os pais sofrendo pelos filhos, os filhos pelos pais, pelos avós. Os maridos pelas esposas, e vice-versa. Pior: os filhos desamparados, sem pai, sem mãe. O filho único, que se formou em medicina e tornou-se um médico respeitado pelo seu trabalho, e agora é somente uma lembrança na saudade daqueles que o amavam – o filho que também era o pai querido e o marido bem-amado. A enfermeira, que lutou pela vida de dezenas e dezenas, à frente da sua equipe e, após 45 dias pronada, sai da UTI aplaudida pelos colegas e pacientes… num caixão lacrado.

E os olhos do repórter despejam lágrimas contidas, que serenamente escorrem pelo rosto e molham a camisa.

– Além do vírus, que causa a doença, quem é o responsável por isso? O presidente? O ministro? O governador? O prefeito? Quem, meu Deus? Quem será julgado no Teu Tribunal por essas mortes, pelos sequelados, por todo esse sofrimento, meu Deus? – sussurrava o repórter em sua elucubração.

E o pensamento recorreu ao Estado, um gigantesco elefante lerdo, que se alimenta à custa da muita energia gerada pelos seus cidadãos; que tem sob o seu comando uma casta de ratos que se locupletam dos esforços daqueles que alimentam o monstruoso animal.

Pensou no parlamentar que aparece na televisão, no horário nobre, anunciando que conseguira verbas para a compra de oxigênio e respiradores. Só esqueceu de dizer que o fornecedor do oxigênio e dos respiradores é uma empresa cujo proprietário é laranja, e os preços foram superfaturados. É o prefeito, o governador, que propiciam essa ponte, também colocando o “seu” nos bolsos, já pensando na próxima eleição.

E o presidente? Aparentemente um negacionista débil mental, mais perdido do que marido pego em flagrante pela mulher, na verdade aduba o seu eleitorado com as bravatas que querem ouvir. Liberou dinheiro para o combate à pandemia porque o Congresso o obrigou – afinal, todos precisam de um troco nas cuecas. O presidente brada aos quatro ventos que a sua responsabilidade pelo combate à pandemia foi retirada pelo Supremo – como Pilatos, lavando as mãos pelas mortes dos justos. Que mandou dinheiro para estados e municípios. Mas, sabendo o que ia acontecer – afinal, a sua origem política é lá, no ninho; oficialmente Parlamento – não acionou, profilaticamente, os órgãos de controle: CGU, MPEs, PGR, tribunais de Contas. Foi tudo ao Deus dará! E assim estamos.

O uso de medidas restritivas da circulação de pessoas, potencialmente portadoras do vírus – logo, restrições à circulação do vírus – vulgarmente simplificadas por lockdown[1], são verdadeiros crimes contra a economia popular. E isso preocupa muita gente – sobremaneira o presidente. Gente com poder e meios, e que nunca apresentou programa com alternativas de subsistência econômica, sobretudo direcionado aos “invisíveis”. Um Sistema S poderoso, federações e confederações de empresários e trabalhadores riquíssimas, que têm como desenvolver plataformas alternativas de comércio, prestação de serviços e produção de pequeno porte, ficaram, estas sim, invisíveis ante o quadro catastrófico.

E assim, o país vai perdendo população economicamente ativa, profissionais qualificados. Pior: profissionais de Saúde, tão necessários, estão sendo abatidos, sacrificados, como gambitos no tabuleiro do xadrez político-partidário. E o horizonte da recuperação econômica torna-se cada dia mais distante.

Coitada da população! Vítima do sistema. Afinal, o que todo mundo quer é sair às ruas pra trabalhar, tomar um chope no bar, exercitar o corpo numa balada. Negar que o vírus existe, que causa uma doença potencialmente letal, é mais fácil, pra justificar o baile raive, o uso de máscara com o nariz de fora. Sim, afinal, tudo é uma conspiração internacional comandada pela China pra derrubar o governo democraticamente eleito pelo povo, e que, pra resguardar a democracia, mira num golpe militar que o garanta plenos poderes, livre das amarras de forças ocultas.

E entorpecido naquela reflexão-pesadelo, o repórter é despertado pelo grito: – Vocês sabem se o prazo pra entrega da declaração do imposto de renda foi prorrogado? – ao qual ele responde: – Foi! Então um outro colega interpõe:

– Não foi não! Só o Senado aprovou. Agora vai pra Câmara. E um terceiro grito:

– Rodolfo foi eliminado!

Nada como um povo esclarecido e bem-informado.

[1] Literalmente: confinamento, clausura, total isolamento, sem contatos exteriores.

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