Inflação: o dragão voltou?

Capa revista Veja, ed. 913, 05/03/1986.

Sou da geração que sofreu os danos da inflação nos anos 80, a “década perdida”. Era bancário quando, numa manhã de terça-feira, 28 de fevereiro de 1986, cheguei no trabalho e fui informado, como os demais colegas, que não haveria expediente. Ninguém tinha ideia do porquê. Nem os gerentes. Um deles ainda arriscou que seria uma celeuma entre a FEBRABAN e o governo federal, presidido por José Sarney. Mas na verdade se tratava do Plano Cruzado: tabelamento e congelamento geral de preços, ensejando o surgimento do “fiscal do Sarney”. Foram cortados três zeros do velho cruzeiro, com a intenção de promover em 1.000% o poder de compra da nova moeda, o cruzado – primeiro plano heterodoxo de relevância no Brasil. A imprensa, em geral, apoiou. A classe empresarial e a maioria do staff político – menos o PT, claro!

Apesar de que a ideia seria descongelar os preços seletiva e gradativamente, o sucesso do plano foi tanto que o presidente decidiu manter o congelamento até às eleições, em outubro – não obstante os protestos do ministro da Fazenda, Dilson Funaro. Pra mim, figura icônica foi uma charge da revista Veja: Sarney com a perna congelada e Funaro tentando quebrar o gelo com formão e marreta. No final tudo isso virou folclore.

Nesse meio tempo as prateleiras esvaziaram, o gado sumiu dos pastos e a carne dos frigoríficos, as montadoras esvaziaram os pátios. Surgiu o ágil, descaradamente! A ponto das negociações serem feitas com o preço oficial, acrescido do ágil. Quando íamos comprar bens de algum valor relevante, já perguntávamos: – E quanto fica com o ágil? Dura realidade, que ficou mais dura ainda dias após o resultado das eleições, que deram esmagadora vitória ao MDB: foi decretado o Plano Cruzado II, sucedido por vários outros planos heterodoxos, até o advento do Pano Real, em fevereiro 1994.[1]

Capa revista VEJA, ed. 942 de 24/09/1986.

E em agosto de 2021 a inflação acumulada nos doze últimos meses volta aos dois dígitos: 10,25%, o que me faz lembrar do bafo do dragão queimando o meu parco salário. Um brinde ao governo Bolsonaro!

A taxa Selic, que baseia os juros de mercado, passou de 2% ao ano em outubro de 2020 para 6,25% em outubro de 2021. A fórmula monetarista é simples: a inflação sobe, o Banco Central aumenta a taxa básica de juros. Os juros sobem, aumenta o custo de financiamento do capital, as empresas investem menos na produção e mais no mercado financeiro, desempregando. A demanda cai – este é o objetivo do aumento dos juros: puxar os preços pra baixo. Mas em compensação, como a produção reduz, os preços aumentam, com a forte ajuda do aumento do dólar – efeito do incremento da taxa de juros. O dólar aumenta, aumentam os derivados do petróleo, nossa matriz energética: óleo diesel, gasolina, combustível de avião. Mais aumento de preços!! Simples, né?

Aí o nosso presidente vai às redes sociais e fala mal da China, nosso maior comprador. O mercado não gosta e cai a bolsa, há fuga de capitais (dólar). Como o dólar é uma mercadoria sob o efeito da oferta e da procura, com a redução da sua disponibilidade fica mais caro ainda. O dólar subindo, os preços de bens e serviços vão juntos, inclusive o petróleo e seus derivados. Mas juros altos não atraem dólares? Sim, capital volátil, especulativo. Dorme no Brasil e acorda em um paraíso fiscal qualquer (!).

A nossa moeda desvalorizada facilita as exportações. Exemplo são os preços da proteína animal e dos grãos, que tornam-se mais competitivos no exterior, o que faz com que o agronegócio feche mais contratos de vendas lá fora, reduzindo a oferta interna e… adivinhem? Os nossos preços internos aumentam.

E de quebra a economia da China dá uma desacelerada e compra menos da gente. Há uma queda das nossas reservas em dólar, o que, somado à anterior fuga de dólar, reduz o poder de barganha do Banco Central em leiloar a moeda do Tio Sam pra controlar sua taxa de câmbio.

Mas se a China comprar menos, então significa que teremos mais produtos primários no mercado interno e os preços vão cair, certo? Não penso assim. Penso que as empresas vão continuar aplicando no mercado financeiro, atraídas pelos juros altos. Em virtuda das incertezas no quandro político e, por consequência, da conjuntura econômica, tenderão a reduzir mais ainda a produção, para garantir os preços nas negociações futuras – commodities – a fim de assegurar a taxa média de lucratividade. E assim chegaremos à estagflação – inflação acompanhada da estagnação econômica: desemprego e miséria.

Infelizmente o caminho está trilhado. Francamente, em face do que tenho acompanhado pelos noticiários e redes sociais, não vejo capacidade intelectual, técnica, operacional e política na dupla Bolsonaro/Paulo Guedes para desviar desse caminho.

Claro que a nossa breve análise enseja o recebimento de críticas por falhas na formulação espontânea, sem maiores requintes metodológicos, com o agravante da simplificação dos agentes econômicos. Mas no geral as coisas são mais ou menos assim. Infelizmente!

[1] Tô começando a pensar que a preferência por lançar esses planos econômicos em fevereiro é por conta do carnaval.

2 comentários em “Inflação: o dragão voltou?”

  1. Ótimo texto, parabéns! Em minha ótica vejo que hoje estamos pagando o preço de erros das medidas econômicas tomadas em governos anteriores, a falta de uma política econômica e social que vislumbrasse um país pujante em crescimento foi muito falha. Assim como você vi de perto essa inflação de 1000%, os preços amanheciam um valor e horas depois já eram outros. Mas como bom brasileiro torço para que esse atual governo consigo ver e seguir um caminho de prosperidade, isso falo independente de partidos.

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