Quando a política partidária vira religião e o político de carreira torna-se Deus, não se sustentam mais os argumentos lógicos

Personagem de Chico Anysio, Salomé de Passo Fundo dava telefonemas com duras críticas, em tom intimidativo, ao então presidente general João Batista Figueiredo. Foto: Memorial Chico Anysio

Em recente acirrada discussão de casal, a contendora não se conformava com a derrota dialética, e trazia ao debate cada vez mais argumentos, e argumentos mais e mais desprovidos de fundamentos. Até que o marido apela pro bom senso: “Ai, meu Deus! Será que tu não percebes que isso não faz sentido? Que tu não tens a mínima razão?” Tal intervenção inflamou ainda mais a belicosidade da mulher amada, com a típica alteração de voz e incremento nas palavras. Nessa altura o cônjuge varão abre o Instagram, o que raramente faz, e Deus – ou o algoritmo -, ouvindo o seu clamor, mandou uma mensagem:

“Mais vale paz do que razão, quando se está com a consciência tranquila.”

Então o silêncio fez-se seu argumento, com olhar de indiferença num semblante sereno. E diante de si viu a verdadeira face de Lúcifer – pelo resto do dia. E sua alma, em posição de lótus, estampou o sorriso dos vencedores.

Esta breve introdução ilustra o ambiente polarizado no qual vivemos nos últimos anos, no Brasil e no mundo.

Pela publicação do artigo Inflação: o dragão voltou?, recebi elogios, mas também várias críticas de leitores, inclusive amigos queridos, admiradores do presidente Bolsonaro, em síntese, me ridicularizando por atribuir ao mandatário do Executivo a responsabilidade pelo atual estágio inflacionário no País:

“Vou rir porque é piada, a piada é boa. Kkkkkkkk. Veja aí a inflação no mundo e o que tem motivado essa escalada do aumento de tudo”.

“Querer atribuir ao PR a escalada inflacionária de repercussão mundial impelida pela grave crise pandêmica global, causada por engodos comunistas com respaldo da OMS é de uma diarreia intelectual sem precedentes, apenas fomentado por esquerdopatas malditos e satânicos. Fiquem em casa, que depois a economia a gente ver.”

“Ótimo texto, parabéns! Em minha ótica vejo que hoje estamos pagando o preço de erros das medidas econômicas tomadas em governos anteriores, a falta de uma política econômica e social que vislumbrasse um país pujante em crescimento foi muito falha. Assim como você, vi de perto essa inflação de 1000%, os preços amanheciam um valor e horas depois já eram outros. Mas, como bom brasileiro, torço para que esse atual governo consigo ver e seguir um caminho de prosperidade, isso falo independente de partidos.

“Ninguém se preparou pra essa pandemia. O mundo está de quatro. Aqui no Brasil não se uniu forças para combater a Covid… aqui tentou se construir um discurso para derrubar o presidente.”

Bem me recordo do Rinaldo, professor de matemática do cursinho preparatório para o vestibular, quando expunha algum axioma – ou postulado. A título de ilustração: “A reta é ilimitada”. “Todos os ângulos retos são iguais entre si”. “O plano é ilimitado”. “Por uma reta pode-se traçar uma infinidade de planos”. “Qualquer plano divide o espaço em duas regiões chamadas semiespaços”.

O aluno aplicado[1], anotando cada palavra, levanta a mão: “Professor, e como se chegou a essas conclusões?” E uma das respostas mais sábias que já ouvi: “Deus disse”.[2] Aqui proposições matemáticas se misturam com o mistério da fé na didática pedagógica. Mas o resultado é prático: não se discute o que se toma por verdade absoluta! E a palavra de Deus é uma verdade absoluta.

E assim caminha a humanidade, sempre em busca do conforto da certeza, da segurança em servir a alguém, abstrato ou material, na esperança de receber as recompensas no paraíso.

E assim são lulistas, bolsonaristas & Cia Ilimitada. É evidente que, no mérito, Luiz Inácio não foi inocentado dos seus crimes. O que houve foram decisões extemporâneas, com base, ou “inspiradas”, em provas ilegais, colhidas de árvore podre, que, processualmente, resultaram na nulidade dos feitos. Mas há quem diga e afirme, credulamente, que se trata de um inocente injustiçado, um profeta que foi sacrificado na cruz para absolver a Nação dos seus pecados.

Por outro lado, exsurge desse cenário de corrupção e roubos o Messias, aquele que há de trazer de volta toda a honra e glória do período militar, quando o País viveu o seu apogeu desenvolvimentista.

De sorte que, ao criticar[3] o governo Jair Bolsonaro quanto à sua política econômica, se é que existe, não estou me bandeando para a esquerda, com saudade dos discursos da Dilma, e da insuportável demagogia de Luíz Inácio. Estamos, simplesmente, dissertando sobre, ponderando, a política econômica da atual gestão.

Acho que os governos mais diretamente criticados, debatidos, investigados, sob o aspecto econômico, foram os militares. Naquele tempo os ministros da área econômica, Fazenda e Planejamento, eram eminências pardas, verdadeiros grãos vizir: Mário Henrique Simonsen, Delfin Neto, Roberto Campos, Otávio Bulhões. Convenhamos, a qualidade intelectual e técnica era incomparável – e esta opinião está longe de legitimar as políticas adotadas, como um todo. A propósito, o meu filho mais velho se chama Mário Henrique. E é, sim, uma homenagem ao intelecto.

Desta forma, no que pese a repressão e a censura aos meios de comunicação[4], sobretudo no final dos anos 60 e início dos 70 – Costa e Silva e Médici -, as políticas econômicas dos governos militares eram manchete todos os dias, com críticas e debates de todos os lados. A esquerda apelidou, sarcasticamente, Roberto Campos de Bob Field. A Salomé, personagem de Chico Anysio, telefonava diretamente para [João Batista] Figueiredo, reclamando de política, de economia. Pra quem não lembra, no Novo Testamento Salomé pede ao rei Herodes a cabeça do profeta João Batista numa bandeija, no que é atendida.

E agora não se pode comentar, criticar, questionar nada da política econômica da dupla Guedes/Bolsonaro, que já se trata de inimigo esquerdopata? Quando o crédito já está caro e o ministro resolve aumentar as alíquotas do IOF – imposto sobre operações financeiras – para gerar caixa, é um axioma? Querer tributar as transações via plataformas digitais, sendo que o consumidor já paga toda a parafernália tributária existente, é um postulado divino, sem direito a questionamento? Aí já não se trata de axioma, mas de dogma – o que, na prática sob estudo, dá no mesmo.

É vero que o mundo todo sofre pressão inflacionária. Sofre com o aumento dos preços dos combustíveis fósseis, justamente num momento em que os governos, inclusive o chinês, buscam mudança na composição da matriz energética, cujo principal componente ainda é o petróleo. Em nenhum momento culpamos o PR pela crise mundial. Mas o que está se fazendo para minimizar os impactos dessa crise internamente?

Meu Deus! Voltamos ao assistencialismo, ao clientelismo, à cesta básica como forma de alimentar a dependência eleitoral[5], e distribuição de emendas para garantir apoio parlamentar. Gradativamente estávamos nos tornando um país de miseráveis nos governos do PT. Com Bolsonaro, aliado à conjuntura internacional, esse processo está se agravando. Ele trata o erário como uma fonte ilimitada de recurso, como era previsível para um nacionalista de direita. O que, no mundo real, é insustentável, nos aproxima do cenário argentino no curto prazo e, no efeito retardado, da Venezuela. O que me surpreende é Paulo Guedes aceitar e ainda defender esse quadro dantesco.

Não consigo dimensionar melhora significativa no ambiente de negócio no Brasil. Cada infeliz pronunciamento do presidente, cada manifestação de rua, cada ameaça de paralização dos caminhoneiros, repercute na economia, em face da ameaça à segurança política e institucional. Não sou eu quem diz isso, são os analistas, os que são pagos, e muito bem pagos, para minimizar os riscos dos investimentos do capital. Quem lembra daquela analista do Santander, se me recordo bem, que previu a debacle da economia no governo petista? A coitada perdeu o emprego, mas hoje o seu passe vale gasolina, pois ela estava certa!

Ao invés de minimizar o Estado, Bolsonaro está agigantando. E agigantar o Estado não é mantê-lo como gestor de empresas estatais de capital privado, mas passa pela centralização da carga tributária, mantendo a dependência de estados e municípios em relação à União. Era isso o que eu esperava de uma reforma tributária, em duas vertentes básicas: consagrar o pacto federativo, com maior distribuição da carga tributária para estados e municípios, ao mesmo tempo que desoneraria responsabilidades da União para com os demais entes, permitindo, pois, que o Governo Federal atuasse em seu campo típico de ação. No segundo plano, simplificar e reduzir a carga tributária para os agentes econômicos, o que não significa, necessariamente, queda na arrecadação. Aliás, durante toda a campanha Guedes e Bolsonaro falaram na Curva de Philips, e até hoje creio que Jair não sabe o que é isso.

Portanto, caros leitores e eleitores, não se deve dogmatizar governo, nem governante algum. Uma breve leitura sobre a história do século XX, esse século tão diverso e rico, tragicamente rico, deixará transparecer o perigo da polarização.

E talvez seja impossível, mesmo, criticar a política econômica do ministro Paulo Guedes. Neste sentido, deixo um enigma a ser respondido a quem se propuser, dentro das quatro linhas: em que consiste, afinal, a política econômica do atual governo? E o que desse plano já foi realizado?

[1] Que certamente não era eu.

[2] Axiomas ou postulados são proposições aceitas sem demonstração, tomadas como verdade.

[3] No sentido de avaliar, examinar, mensurar parâmetros.

[4] Censores eram ridicularizados por jornalistas, escritores, compositores, autores, poetas e intelectuais de esquerda.

[5] A despeito deste tema, vamos nos deter com mais cuidado em uma próxima publicação.

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