No fim somos meros mortais

E no final somos simples mortais, como todos os seres viventes. Desde o começo determinei-me a ser alguém vitorioso. Mas em certo momento resolvi ser mendigo e pedir esmolas, como caminho para atingir a iluminação, sob a árvore da sabedoria. Depois, uma pessoa alegre. Aí um intelectual reservado e tímido, cuja obra ficasse para a posteridade, talvez fosse mais adequado. Mas agora decidi ser rico, famoso e bonito! Afinal, sou imortal. Who whants to live for ever?

Ah… nada como estarmos frente-a-frente com a morte! Já tive três experiências. No contexto isto não é nada, considerando que não precisamos de experiência para morrer. A primeira foi quando, aos nove anos, juntamente com a minha mãe, meu irmão e um casal fugitivo – o condutor do barco estava “roubando” a namorada porque a mãe da moça não queria o casamento – naufragamos no meio do Rio Negro, após uma tempestade tropical. Para quem não conhece o Rio Negro, é o maior afluente do Rio Amazonas. Em determinados trechos, quem está no meio não vê as margens. Foi aí que naufragamos, por volta das 16 horas de um domingo em 1974. O bom disso é que eu teria morrido virgem, sem o pecado da carne – masturbação conta?

A título de esclarecimento: estávamos em uma voadora com motor de popa – um pequeno barco de alumínio com três bancos de uma lateral a outra que, soltos, transformavam-se em boias, pois eram recheados de isopor. Quando a onda cobriu a pequena canoa, o condutor, experiente, de imediato a virou. Com o isopor dos bancos e o ar sob o côncavo, a pequena lancha ficou boiando. Eu, que não sabia nadar, me agarrei fortemente à minha mãe. Ela, tadinha, buscou o meu irmão, que era bebê e afundou. O nome do condutor era Manoel – um herói!! Ele mergulhou e pegou o meu irmão. Então ficamos eu e o meu irmão sobre a plataforma da lancha, e os adultos flutuando na água, apoiando-se no flutuante.

No começo estávamos cheios de esperanças. Várias lanchas de alta velocidade passavam ao longe. Dávamos com as mãos e ninguém percebia – ou pensavam que estávamos em uma farra no meio do rio. Às 22h eu já estava adormecendo. O meu irmãozinho dormia o tempo todo. A minha mãe já tinha decidido que ia se soltar: a nós dois e a ela. Católica fervorosa, já tinha orado e entregue as nossas almas a Deus. Não tinha cumprido a promessa porque o Manoel (Manéu) e a noiva imploravam que não o fizesse. Mas a mamãe estava determinada. Dizia que não estava mais sentido as pernas, o corpo adormecera na água.

Então surgiu uma luz na escuridão – literalmente! Um daqueles típicos barquinhos dos rios da Amazônia – a gente chama de motor – navegando lentamente a uma boa distância. Todo mundo começou a gritar! O Manéu subiu na plataforma a agitava a camiseta branca ferozmente! A minha mãe chorava e dizia que era a “última chance”: se o barco fosse adiante, ela se soltava com nós dois. E o barco foi. E nós paramos de gritar, desesperançados.

Mas antes que a mamãe tomasse a mim e ao meu irmão e nos soltasse no Rio Negro, ouvimos o motor do barco bater compassadamente. Só quem é amazônida entende isso. Significa que o barco está diminuindo a velocidade… e o barco parou! A impressão que tive é que toda a vida explodiu em nosso sangue, e começamos a gritar desesperadamente. Lembro que eu gritava: “Nós num samu fantasma não!!” – sim, pois senti medo que pensassem que éramos fantasmas e fugissem. Aí o motor voltou a funcionar com a batida progressiva. Com o mesmo ímpeto que a esperança explodiu, feneceu.

A minha mãe, que já estava abraçada com o meu irmão, me chamou: “Vem, meu filho! Vocês nasceram de mim e comigo vão morrer”. Mas eis que o holofote do barco se virou para nós. A vida ressurgiu! Enfim, o pequeno barco nos resgatou. Era a família inteira: pai, mãe, seis filhos, a sogra e o cachorro. Quem ouviu os nossos gritos foi o caçula, de seis anos. A mãe disse que ele ficou repetindo que estava ouvindo gritos. Repetiu, repetiu, repetiu, e ninguém deu atenção. Até que falou pra avó. A velinha, com a autoridade de mãe da esposa, mandou o genro parar o motor. GRAÇAS A DEUS!!! E viva as sogras!

A segunda vez em que vi a morte de perto foi quando fui acidentado, com 21 anos de idade. Morava em Manaus nessa época. Fiquei em coma, com o rosto desfigurado. Os médicos me mantiveram três dias sob antibióticos e anti-inflamatórios aguardando a reação. Só depois me transferiram do Proto Socorro 28 de Agosto para a Beneficência Portuguesa, quando fui operado. Até hoje tenho sequelas. O meu palato foi partido ao meio. O nariz esfacelado.

Nestes dois casos, a morte estava ali, frente-a-frente, mas teve diálogo, teve um tempo pra pensar, pra despedidas. Tive pensamentos, visões estranhas. Enquanto estava no hospital tive visões de corpos em campo de batalha, muita vontade de chorar, um arrependimento de algo que não sabia o que era. Dor física não sentia. Nem na hora do acidente, nem durante o tempo mais crucial, pois estava dopado.

Mas a iminência da morte não se compara com a terceira vez. Curiosamente, neste caso, as únicas sequelas foram as lembranças e um pequeno amassado no meu carro zero quilômetro. Explico: em fevereiro de 2006 comprei um Renault Scénic 1.8 16 válvulas. Fiquei louco pra pegar a estrada. Pra Manaus? Não! Pra Margarita!! Estávamos de férias e a minha mulher completava 24 anos de idade no dia 25. Caia num sábado e tínhamos convidado os amigos para um churrasco em casa, sem tempo pra acaber. Mas na manhã do dia 24 acordamos cedo. Olhamos um pro outro e nos dissemos: “Vamos pra margarita? Vamos!!” E fomos.

Saímos de Boa Vista por volta do meio-dia pra dormir na fronteira e seguir viagem bem cedinho, pois eu tinha como hábito pegar direto de Santa Elena a Pueto La Cruz, onde embarcávamos no ferryboat para a Isla Margarita. Fui com a pouca gasolina que estava no tanque quando peguei o carro na concessionária, pois o combustível era praticamente de graça na Venezuela, centavos de bolívar. Mas em Santa Elena não tinha o precioso líquido – Hugo Chaves já era o presidente. Então peguei a estrada cedinho, quase na reserva, pra chegar em San Isidro. Pouco antes da Pedra de Virgem, na conhecida curva do cotovelo, descendo na embalagem, na quarta marcha, com um chuvisquinho, exatamente na curva, o carro desliza e sai da estrada, indo direto para o abismo. Chegamos a ver o igarapé lá embaixo, as árvores pequenininhas. Completamente calmo e resignando, pensei: “Então é assim que eu vou morrer…”

Mas ainda não foi daquela vez. O mesmo chuvisco que tornou o asfalto liso e provocou o deslizamento, molhou um pequeno tufo de areia, justamente na beira do abismo. Então o carro atolou, com as duas rodas dianteiras metade da circunferência enterrada na areia, e a outra metade do lado de fora. O carro inclinado, mais ou menos a 45º. Ficamos de um a três segundos contemplando o cenário, lá embaixo, talvez esperando a queda. Até que a minha mulher começou a chorar e gritar, num início de pânico. Então abri a minha porta, com dificuldade, pois a lateral havia parcialmente enterrado na areia molhada. Mas consegui e vi que seria uma queda livre. Acho que quando o carro chegasse embaixo as nossas almas já teriam dado no pé.

Segurei onde pude na lataria, no teto, na porta, com os pés por baixo, também enterrados na areia, fazendo um corredor entre mim e o carro, por onde mandei a minha mulher passar, o que ela conseguiu fazer, não obstante o nervosismo. Depois foi a minha vez de tentar sair dali. Fui me esfregando na lataria, até que consegui chegar no solo firme. Olhei pro carro e pensei: “Agora pode cair”. Mas não caiu. Imediatamente começaram a chegar carros de brasileiros. Era feriadão de carnaval e muita gente, como nós, ia pra Margarita, inclusive gente de Manaus, como o rapaz que nos deu carona até San Isidro para contratar um guincho, a fim de puxar o carro. Fora um leve amassado na lateral anterior esquerda, por ter batido numa pequena palmeira, nada mais aconteceu com o carro. Acabamos seguindo viagem e todo o resto foi maravilhoso!

Como disse, das três vezes em que estive frente-a-frente com a morte, a terceira me pareceu a mais iminente, sem direito a despedidas. Mas imagine o leitor que um dia, daqui a pouco ou mais tarde, eu irei morrer! E Você também caro(a) amigo(a), seja por qual motivo for. Atualmente o novo Corona Vírus desponta como a causa mais provável. Principalmente pra nós, velinhos. Não sei se consegui contribuir para evitar o pânico desta pandemia para quem leu este artigo. Mas, em resumo, é isto mesmo: no final, somos meros seres mortais. Vamos morrer de qualquer jeito.

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