A inexorável efemeridade da vida – umas histórias da Boa Vista antiga

Gosto muito de imagens antigas, estáticas e em movimento. Gosto de músicas antigas. Às vezes sou tomado por nostalgias – isto mesmo: nostalgia no plural. Parece que vivi em várias épocas, em muitas épocas. Todas as épocas. E todas essas épocas às vezes parecem transpassar minha mente, num fluxo e refluxo.

Nasci em 1965 na cidade de Boa Vista, antigo Território Federal de Roraima, e muito, muito pobre. Vivíamos quase na idade média, naquele tempo. Sou da lamparina, do farol, da água tirada do Rio Branco, das lavagens de roupa no cais, no igarapé do Caxangá ou no igarapé do Pricumã. Eram os locais onde a minha avó lavava roupa, ela própria lavadeira profissional por um bom tempo, além de costureira. Criava galinha do quintal. Pato, porco, eventualmente cabrito. Fogão a lenha. Tinha o fogão grande, com chapa de ferro – onde a gente colocava a bunda da tanajura pra assar. E tinha o fogareiro, onde usava-se graveto e querosene para fazer o fogo do carvão pegar. Água dos potes – a minha avó tinha dois e uma bilha. Dos potes, ela achava que o de barro escuro era o que mais gelava. A água era retirado pelo púcaro, sempre bem ariado com areia – desculpem o pleonasmo – ou folha de caimbé.

O café era comprado em grão na feira onde hoje é o Centro de Artesanato, na Orla Taumanan. Em casa a minha avó torrava e moía. Mas uma vez, ainda bem pequeno, fiquei numa fila enorme por causa da novidade da cidade: o seu Vicente Elói, na avenida Jaime Brasil, comprara uma máquina que torrava e moía os grãos de café na hora, e o pó saía quentinho. Aquilo chegou nos ouvidos da minha avó e no primeiro dinheiro que pegou das suas costuras, me deu as cédulas enroladinhas, fechou a minha mão e me mandou comprar meio-quilo de café “torrado e moído na máquina”. Me fez repetir isso uma 20 vezes, pra decorar – a ainda com a recomendação: “Só entrega este dinheiro pro Vicente Elói! Não adiantou. Quando ia chegando no seu Vicente Elói, que ficava a poucos quarteirões de casa, esqueci o que era pra comprar! Mas, embora com déficit de atenção, sempre fui inteligente: vi que tinha uma fila e as pessoas sempre pediam a mesma coisa. Quando foi chegando a minha vez, ouvia as pessoas dizerem: “Um quilo de café”. “Duzentos gramas de café”. “Meio-quilo de café”. Aí pensei: “Acho que é pra comprar isso mesmo… Então o seu Vicente me olhou por cima do balcão e perguntou: “E tu, neto da Niná, quer o quê?” Com aquela satisfação de estar sendo útil pra minha avó, respondi, apontando pra máquina: “Um quilo!” Ele me pediu o dinheiro e disse que só dava meio-quilo. “Ah, é isso mesmo, seu Vicente Elói! Eu que tô ficando doido”.

Lembro até hoje: o seu Vicente Elói mediu o peso dos grãos na balança vermelha. Quando o ponteiro chegou no 500 ele despejou tudo na torrefadora, colocou o saco de papel numa boca, que ficava na parte de baixo da máquina, e ligou. Fez um barulho, os grãos começaram a sumir, veio um cheiro forte e gostoso de café torrado e, por incrível que pareça, o pó foi caindo no saco de papel! Aí ele enrolou a boca do saco e me deu o pacote. Quando eu já ia bater o pé na carreira, ele gritou: “Ei, menino! Ainda tem troco. Vai querer de búzio ou moeda?” Qual a minha resposta? “De búzio, seu Vicente!” Cheguei em casa com o pacote imprensado no peito, quente, quase queimando, e uma das mãos cheia de búzio – um caramelo de leite.

– Mãe Niná, o seu Vicente Elói disse que não tinha troco. Aí eu tive que trazer tudo de búzio! A minha avó olhou por cima dos óculos para a dona Amélia, que era uma das suas inquilinas e disse: “O Vicente Elói, tamanho um velho, não tem vergonha, enganando criança, dizendo que não tem troco. Quando for lá vou dá-lhe uma esculhambação! – Puts! Fiquei rezando muito pra que demorasse ela ir no armazém do seu Vicente, até esquecer aquela promessa.

Outra novidade foi quando o seu Tiam Fook começou a vender frango abatido. A minha avó também quis conhecer a novidade. Ela criava galinha e pato pra vender, e me mandou levar um galo na feira, que ela já tinha acertado a venda, e com o dinheiro ir “na granja do Tiam Fook comprar um galeto”.

Aqui era o armazém do seu Beto, como eu conheci. Acho que o Filipe – do Filipe de Muitas Portas, como chamavam o estabelecimento antes, era pai do seu Beto. Mas não tenho certeza. Como são duas da manhã, eu não vou ligar pra minha mãe pra confirmar. A velinha vai me mandar pra… Que no final vai ser ela mesma.

Outro lugar onde eu também ia muito fazer compras pra minha avó era no seu Beto, na Bento Brasil com a Jaime Brasil. Todo dia quando eu ia comprar pão na padaria do Paulo Miló – acho que se escreve assim – o seu Beto, careca e de óculos, já estava com as muitas portas abertas  – antes aquele lugar era conhecido por Filipe de Muitas Portas. Eu sempre falava: “Oi, seu Beto!” Ele me olhava e balançava a cabeça. Um dia, logo cedo, a dona Amélia veio com a notícia: – Niná, tu não sabe quem morreu! – Quem? – perguntou a minha avó. – O Beto! O Beto do armazém. Foi encontrado morto, hoje de manhã. Morreu dormindo. Coração! – Aí eu fui comprar pão e todas as portas do seu Beto estavam fechadas. Eu olhei e pensei: “É… ele morreu! Nunca mais vai me olhar e balançar a cabeça pra mim”. Acho que ele era solteirão. Por isso lembro da minha avó comentando: “Taí: nunca casou e morreu sozinho!” – como se a pessoa precisasse de companhia pra morrer.

Outra pessoa intrigante pra mim era o padrinho da minha mãe, o seu Dahas. Ele era turco – todos os árabes aqui em Roraima eram chamados de turco. O seu Amadeu Hamid, por exemplo, era egípcio, mas todo mundo o conhecia por Turquinho. Então o seu Dahas ficava sentado em frente ao seu comércio, sempre de cara amarrada. A dona Emília, sua esposa, velinha linda, com aqueles olhos azuis encandecestes, sempre sorrindo pra todo mundo. A minha mãe passava e dava bênção: “Bença padrinho! Bença madrinha!” Ele levantava a mão e respondia em tom grave: “Abençoe!”  E a dona Emília, melódica: “Deus te abençoe, minha filha!” Quando eu passava sozinho, cumprimentava: “Tudo bem, seu Dahas?” Ele só levantava a mão. Parecia o Hitler. Já a dona Emília sempre puxava conversa, perguntava como eu estava, como estava a minha mãe e a “comadre Niná”, minha avó. Um dia, quando fui comprar alguma coisa no comércio, ela me perguntou o que eu queria ser quando crescer. Disse que não sabia ainda, mas talvez da Marinha. Oficial. Então ela disse que eu tinha “estampa” de militar: “É bem claro, louro de olhos azuis, vai ficar bem de uniforme”. Mal sabia ela que eu não iria crescer muito. Melhor ter sido fiscal da SEFAZ mesmo.

O bairro Beiral – Francisco Caetano Filho. Segundo a legenda original, foto na enchente de 1967. No centro-direito, com a placa na faxada, o Bar do Batuta. Do outro lado da esquina alagada, o comércio do seu Nilo Brandão.

Este artigo já se prolongou muito. O objetivo inicial era falar dos músicos: bandas, cantores, cantoras famosos, jovens e bonitos que estou vendo agora pelo Youtube, hoje decrépitos e boa parte falecidos, tipo: Bread, The Beatles, Elvis Presley, Afrodite’s Child com Vangelis e Demis Rossous. Acabei falando da minha primeira infância – de longe! o melhor período da minha vida!! Quantos anos tinha, nesse tempo supra relatado? Entre cinco e nove anos. Em Boa Vista criança podia andar com dinheiro embolado na mão fechada. Mas só pra não perder. Ninguém te assaltava. E ainda, boa parte das vezes, se alguém achasse e soubesse quem perdeu, devolvia. Verdade! Aconteceu muito comigo. Eu era campeão de perder dinheiro, pedir coisa trocada, diferente do que a minha avó mandava comprar, e o taberneiro sempre destrocava pra mim. Eu perdia o dinheiro e percorria todo o caminho perguntando se alguém tinha visto “tanto”, que eu tinha perdido. Alguém dizia que tinha encontrado, ou que uma outra pessoa tinha encontrado e tinha perguntado de quem era. Mas um dia, tenho certeza que um sujeito da Colônia dos Pescadores achou o dinheiro que eu tinha perdido. Mas jurou que não. Hoje lembro que ele vivia bêbado. Pegou o dinheiro da minha avó que eu perdi e foi tomar de cachaça no Batuta. FDP tem em todo lugar.

Mas isso já faz muito tempo! A Boa Vista onde a minha família morava media poucas centenas de metros quadrados e TODO MUNDO se conhecia, um sabia da vida do outro: quantos chifres fulano pegava, quem comia quem… essas coisas. Faltou falar do arraial de Nossa Senhora de Fátima, bem pertinho de casa. Do arraial de São Francisco. Faltou falar do seu Deusdete da taberna – não sei porquê apelidaram de Pé-de-Bola -, seu João Lopes, que não tinha um dedo. Do Bar do Batuta, do seu Nilo Brandão, seu Bandeira, da Padaria; Gagal, Zé Lito, e até do Beiral, que, por incrível que pareça, apesar de sempre ter sido Zona, era um ambiente familiar. Amava muito tudo aquilo.

Este artigo deverá ter a parte II. Não gosto muito de dividir artigos. Lembro do Flávio Castelar, que publicava “Quando eu era vivo” parte 1.296… 1.297… 3.428… 1.374.278… Um dia eu parei de ler!

 

2 comentários em “A inexorável efemeridade da vida – umas histórias da Boa Vista antiga”

  1. Inexorável….
    Voltar ao passado é viver de novo. Gostei da crônica, retrato do cotidiano de muitos meninos da nossa pacata cidade natal.
    Passei por caminhos muito semelhantes, pouco antes, por conta da idade, mas com o mesmo cenário. Lendo seus relatos, não é que dá uma alegria besta.
    Valeu, amigo. Parabéns

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